Pela Ciência em Portugal

Nacional

Num dia quando se discutiu o Sistema Nacional de Saúde e como este tem sido sistematicamente depauperado, sua rede reduzida com encerramentos, seus recursos humanos forçados a emigrar, com efeitos directos e dramáticos sobre a saúde dos Portugueses, quase parece mau tom referir uma outra área onde as políticas de austeridade (cabe até dizer de morte lenta) dos governos de direita tem tido assinaláveis efeitos. Quase. Estas políticas têm sido tão transversais, atacando até áreas predilectas da direita, como a segurança interna e a defesa, que é imperativo que não nos esqueçamos que não se trata de um mau ministro numa área, má organização ou gestão de um qualquer sistema, mas do culminar de políticas de vários governos da troika nacional de estrangular toda a esfera pública e atentar os interesses nacionais, e a Constituição da República e os direitos nela consagrados. Vem este texto a propósito do estado da Ciência em Portugal.

Amanhã (5/Fev), pelas 14h, os bolseiros e candidatos a bolseiros vão realizar um protesto junto à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) “a fim de exigir uma avaliação verdadeiramente científica para todos os candidatos e o aumento do número de bolsas atribuídas”, segundo se lê no apelo da Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) que convoca o protesto.

Recorde-se que já o ano passado os bolseiros e outros investigadores realizaram similar protesto. Pois já o ano passado, o concurso foi minado de problemas e objecto de um valente corte no número de bolsas individuais atribuídas. A tendência este ano foi igual, com uma agravante. A FCT encontrou forma de burocraticamente excluir centenas de candidaturas. São inúmeros os casos de candidatos que tendo provas de entrega atempada dos documentos, e não tendo recebido qualquer resposta por parte da FCT, souberam apenas na semana passada (quando os resultados foram anunciados) que haviam sido excluídos porque faltava um documento, uma parte da candidatura alegadamente estava mal preenchida, etc. Por em cima de critérios de exclusão assentes no primado da excelência, sumam-se falcatruas processuais de exclusão. Muito haveria a dizer sobre o mérito do critério de excelência e seus efeitos perniciosos. Resume-se à pretensa evocação do mérito para justificar cortes. Darei um exemplo. Os critérios de avaliação, alterados mais uma vez, desta feita premiaram na prática apenas publicações em revistas no primeiro quartil da área, ou seja revistas de topo; e financiamento recebido.

Entre os candidatos a este concurso apresentaram-se investigadores doutorados, que já auferiram bolsas de pós-doutoramento e contractos quinquenais como investigadores (também atribuídos pela FCT). Tendo terminado estes contactos e não sendo recrutados pelas instituições, estes investigadores já com longa carreira, também se candidataram a nova bolsa de pós-doutoramento, concorrendo ao lado de recém-doutorados, ou jovens pós-doutorados, que por simples questão de tempo não têm um currículo tão sénior. Por analogia, seria como um recém mestre estivesse a competir com o recém doutorado. Naturalmente este tem um melhor currículo, mas qual é a função das bolsas?

Esta pergunta tem sido repetidamente levantada perante o uso abusivo desta forma de recrutamento que deveria ser usado sobretudo para formação, mas que face às dificuldades financeiras das universidades, unidades de investigação e laboratórios de estado, usa a bolsa como forma de celebrar um contracto precário para preencher necessidades permanentes, incluindo como electricista, jardineiro, operário de construção. E se forem ler os anúncios dessas “bolsas”  ainda verão que é preciso experiência nessa actividade.

A FCT tem, sob a batuta do Nuno Crato, já um historial notável de concursos suspeitos, minados de problemas. Assim foi com outros concursos de bolsas individuais, com o concurso para contractos investigador, e na avaliação das unidades de investigação (sobre este último consultem o De Rerum Natura que tem inúmeros textos sobre os seus diversos problemas e críticas à excelência). Os resultados deste concurso foram o equivalente ao bombardeamento de Dresden no Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN).

A falta de transparência e problemas  têm sido tão vastos e variados que a grande maioria da comunidade científica. A excepção serão os que regurgitam o discurso da excelência (aliás formulada ao nível da comissão europeia, nem aí o Crato tem mérito), enquanto chupam a teta do privilégio, como é o caso de António Coutinho, director do Instituto Gulbenkian de Ciência e Coordenador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.

Mas como noutras frente de luta, o protesto também nesta área tem os seus frutos. Face à indignação geral sobre a avaliação das unidades de investigação científica, o governo foi forçado a pedir uma sindicância aos processos de avaliação levada a cabo pela European Science Foundation (ESF) (ver). apurou o Económico. Um processo de avaliação que tinha sido encomendado pela Fundação para Ciência e Tecnologia a esta entidade internacional sediada em Estrasburgo.

Há que aproveitar todos os recursos previstos para exercer pressão sobre a FCT. A ABIC “recorda que, para os candidatos avaliados e sem bolsa aprovada, o limite da apresentação de comentários em sede de audiência prévia termina esta semana e apela que, quando aplicável, não deixem de, já nesta fase, apresentarem as suas reclamações” e apela a que amanhã todos “os colegas excluídos da avaliação [levem os] documentos comprovativos de que estão em condições de ser avaliados científicamente.”

Amanhã, juntamente com os bolseiros e candidatos a bolsa, deverão estar todos os membros do SCTN e todos aqueles interessados em salvaguardar a realização de ciência de qualidade em Portugal, elemento fundamental para formação de recursos humanos qualificados, para a realização de ciência básica e aplicada, tão importante para dinamização da nossa economia e para garantir um futuro digno ao nosso país.

* Autor Convidado
André Levy