Produzir conteúdos como arma de resistência

Nacional

Uma das formas que a classe dominante tem de limitar a liberdade de informação e de manipular a qualidade da informação, é pela quantidade e qualdiade de conteúdos.

É um facto que a internet é um meio praticamente livre (por enquanto) e que funciona dentro de parâmetros de grande liberdade individual e colectiva, que permite que os utilizadores façam uso de plataformas proprietárias, como criem as suas próprias, privadas ou comuns. É igualmente um facto que a world wide web está plena de conteúdos revolucionários, desde páginas de partidos comunistas a grupos revolucionários, imprensa comunista, sítios de divulgação marxista, acervos literários e bibliográficos de livre acesso.

No entanto, nada disso implica a alteração da hegemonia cultural e ideológica. A internet, pelo contrário, consolida a actual hegemonia e difunde a ideologia dominante além das fronteiras do que já era possível com a televisão, os jornais e a rádio.

Que motivos justificam que um meio de ligação entre pessoas e organizações, tão poderoso e global como a web, não rompam o domínio ideológico da burguesia? Tais motivos não serão poucos, mas fica já claro que atribuir à web um papel revolucionário ou conservador não é uma tarefa simples, e talvez nem seja mesmo possível, na medida em que, não sendo a web uma tecnologia, é um espaço electrónico e informático que em muitos aspectos não difere do espaço atmosférico por onde vibra o som, nem do espaço hertziano por onde se propaga a radiação electromagnética.

Daí que o preenchimento desse espaço com conteúdos seja de uma importância fundamental. Não sabemos até que ponto a comunicação, a propaganda, a informação, são aspectos determinantes do sucesso ou insucesso de uma revolução, mas sabemos que desempenham um papel de importância extrema no triunfo e na manutenção do triunfo. A hegemonia cultural não é estabelecida apenas através desses mecanismos, mas esses mecanismos ocupam nela um papel muito importante. Porque não teme a burguesia a internet, apesar de não poder controlar todos e cada um dos conteúdos disponibilizados (por enquanto) e apesar da neutralidade da rede (por enquanto)?

As organizações da burguesia não vêem na web apenas um espaço de negócio e de publicidade. A web é um espaço de confronto ideológico, de difusão cultural, de chuva informativa ao gosto de quem produz a informação, de conteúdos, no essencial. A produção de conteúdos culturais e ideológicos para os pulverizar nesse espaço informático é um elemento importante para quebrar a monotonia da cultura dominante, da cultura do entorpecimento e da submissão de classe.

Sabemos que as pessoas obtêm na web o que obtêm fora dela. E que a maioria esmagadora dos conteúdos de fácil obtenção na web apenas replicam, reproduzem ou até ampliam a doutrina dominante. A vox popoli, por exemplo, tão acarinhada nos sítios de internet de jornais e revistas, é um dos mecanismos de ampliação desse domínio, na medida em que é parte do povo a dar voz à visão que a burguesia lhe inculcou, mas sem filtros e sem pudores porque não tem a quem agradar. A criação de portais de acesso, de homepages, de motores de busca com algoritmos desconhecidos, são outros instrumentos para condicionar a natureza e a qualidade dos conteúdos a que o utilizador tem acesso. Esses muros, essas limitações, são inultrapassáveis conquanto não sejam ultrapassadas relações sociais que as habilitam: é o domínio económico e político da burguesia que lhe permite ter esse peso na produção e disponibilização de conteúdos e será o domínio económico e político do proletariado que lhe permitirá inverter a proporção de conteúdos. Só quando o revolucionário for conservador e os actuais conservadores forem vencidos, a hegemonia sofrerá a mutação total. Até lá, a relação é permanente, a disputa é gradual e tem avanços e recuos, e é dialéctica.

A burguesia não teme a internet como não teme a atmosfera que enche de sons e publicidades, e cânticos e religiões e exaltações. Não teme o papel porque é nele que inscreve as suas mentiras. Não teme o espaço hertziano porque através dele leva muito mais longe as suas lições. A tecnologia, tal como o meio, são ideologicamente neutros. Mas neutros nunca são os conteúdos.

A existência de conteúdos revolucionários e anti-capitalistas não significa que esses conteúdos chegarão a mais gente, mas significa que munirão mais gente com mais elementos. Não existirão mais nem menos revolucionários por causa da internet, tal como não existiram mais ou menos revolucionários por causa da radiação electromagnética ou da vibração sonora. Mas a existência de conteúdos no meio do ruído dominante é fundamental para não liquidar a componente revolucionária que, dialecticamente, disputa a hegemonia.

Daí que seja para os capitalistas fundamental preencher o espaço da web com as suas doutrinas. A quantidade de conteúdos, no caso, contribui determinantemente para a qualidade da mensagem, num mundo em que o motor de busca e a navegação à deriva são importantes. Produzir um conteúdo e difundi-lo na net é como gritar num megafone. Não faz comunistas. Mas não deixa os capitalistas, seus capatazes e cães-de-fila, a gritar sozinhos.