Regressámos, muito recentemente, às tentativas de fazer passar a legalização do lenocínio como se da garantia de mais direitos às pessoas prostituídas se tratasse. Passam pela televisão, ouvem-se na Assembleia da República e reproduzem-se, um pouco por todos os espaços digitais, discursos de empoderamento, feminismo, direitos humanos e liberdade de escolha – como se a prostituição fosse isto tudo. Liberdade.
Posicionam-se, mais uma vez, vozes contra quem defende que a prostituição é uma forma grave de violência contra as mulheres, chamando-nos de puritanas. Juntam-se conceitos diversos e baralham-se para que, no fim da discussão, fique mesmo tudo fora do lugar.
O debate do tema tem-se alargado grandemente por toda a parte, desde os meios académicos ao associativismo, construindo narrativas que confundem liberdade sexual com prostituição; falta de condições de vida com oportunidade de emprego; exploração do corpo com liberdade. A ideia de que a prostituição é, tão só, o direito e a liberdade do uso do próprio corpo e da sexualidade e que ambos podem ser mercantilizados choca profundamente, desde logo, com a dignidade e liberdade do ser humano livre de qualquer exploração.
Antes de mais, importa esclarecer que o ordenamento legal português não criminaliza a pessoa que se prostitui, ou seja, que a prostituição não é tipificada enquanto crime em Portugal. O que se alteraria no quadro legal com o tipo de propostas que se apresentam como o bote de salvação das pessoas prostituídas seria a legalização do lenocínio, do proxenetismo. Então, como se pode ler no artigo 169.º do Código Penal: “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição” – crime punido com pena de prisão entre seis meses a cinco anos, que pode ser de um a oito anos caso se seja cometido por meio de violência ou ameaça grave (entre outras agravantes).
Por outro lado, importa também repudiar de uma vez por todas a falácia do “trabalho sexual”: nem o trabalho, nem os trabalhadores são mercadoria, pelo que o corpo também nunca o poderá ser. Para admitir que o fosse, estaríamos a admitir uma lógica de mercantilização do corpo e do sexo, absolutamente contrária à luta pela emancipação e pelo fim da exploração.
Teríamos de admitir a transformação e a aceitação social do corpo como um bem passível de se transaccionar, como qualquer outra mercadoria, desligado da vontade de quem o possui e de acordo com as necessidades do mercado, da lei da oferta e da procura. Chamar às pessoas prostituídas “trabalhadoras do sexo” tem tanto de empoderador e progressista como o patrão chamar colaborador ao trabalhador que explora.
O mesmo grau de deturpação, subversão e distorção de conceitos acontece com o de sexualidade. Os defensores do “trabalho sexual” usam, e muitas das vezes como forma de ataque a quem defende que a prostituição é uma grave forma de exploração e de violência, o argumento de que ela é sinónimo de uma sexualidade livre e sem pudores. Ora, podemos considerar que se vive a sexualidade em liberdade se dela dependem em exclusivo outros direitos? Se a sexualidade serve para pagar a renda, a comida e as contas do gás e da luz? Pois que para poder, precisamente, usufruir de uma sexualidade livre e plena, não pode nenhum ser humano ser objecto de exploração, coação ou violência.
Podemos compreender que alguns dos argumentos que vamos ouvindo possam, por vezes, acolher simpatia junto de alguns democratas se, ingenuamente, se ficarem por uma análise superficial das suas consequências; caindo, portanto, na tentação de enredar pelos conceitos ilusionistas do “trabalho sexual” e da “liberdade”. A argumentação de uma maior protecção social das pessoas prostituídas, bem como maior acesso a cuidados médicos, mais segurança, ou uma distinção clara entre prostituição “voluntária” e forçada, pode conseguir sensibilizar os mais desatentos. No entanto, não nos devemos perder entre o que, à primeira vista, podem parecer justas preocupações – até porque por detrás dos grandes lobbies da legalização do lenocínio estão, espante-se!, proxenetas (e inclusivamente os mesmos por detrás de centenas de associações pró-legalização em toda a Europa).
A prostituição como exploração capitalista
Para compreender socialmente a prostituição, e não embarcar na ideia proto-capitalista do empreendedorismo ou em divagações filosóficas sobre o que significa o uso livre do corpo, foquemo-nos nas causas que, na esmagadora maioria dos casos, empurram milhares de pessoas, na sua maioria, também, mulheres, para o multimilionário negócio criminoso da prostituição: a exploração da classe, a exclusão social, o aumento das desigualdades e flagelos sociais como a pobreza, o desemprego, a fome ou os conflitos militares. Não é de espantar, portanto, que nas crises estruturais do capitalismo, em que a exploração, a pobreza, a desigualdade ou a guerra se agudizam, aumentem também os negócios criminosos, como o tráfico de pessoas, o tráfico de armas, o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro: negócios onde se mistura, mais vezes do que menos, a prostituição.
Falar de prostituição é, obrigatoriamente, falar da exploração de trabalhadores e de mulheres, e das mulheres trabalhadoras na sua dupla condição de mulheres e trabalhadoras. São elas as principais vítimas da prostituição e também do tráfico de seres humanos, já que uma considerável parte deste é, quando falamos a nível mundial, para efeitos de prostituição. Quanto mais condições se juntarem – emigrante, pobre, refugiada – maior é a probabilidade de uma mulher se tornar vítima desta forma de exploração.
A maneira como cada um se posiciona perante o sistema económico e social vigente – portanto, o capitalismo, uma ordem social injusta e que se baseia na exploração, com características como a mercantilização e a violência – é determinante para a respectiva abordagem à realidade da prostituição.
E falar de prostituição é, por isso, falar também de violência: desde logo pela sua condição de dependência e exploração, mas também pela dissociação entre o corpo e o ser, a dificuldade de enquadramento na sociedade e em conseguir deixar a prostituição, em ultrapassar as marcas desta sujeição ou, a somar-se, os espancamentos e violações a que estão sujeitas tantas vezes as mulheres prostituídas.
No lugar da liberdade entre duas pessoas numa relação sexual, o dinheiro vem substituir o consentimento quando ele falta a uma das partes. É isto a prostituição. Ela afigura-se, por isso – e na realidade – inimiga da libertação sexual e da sexualidade plena. E afigura-se ainda, no essencial, numa relação desigual entre mulheres e homens, já que a maior parte das pessoas prostituídas são mulheres, a maior parte dos compradores de sexo são homens (mesmo quando as pessoas prostituídas são homens também), sendo também maioritariamente homens os proxenetas.
Esta relação desigual, de poder, não se afasta da noção da exploração de um ser humano por outro. E, por isso, não devemos cair na tentação de admitir que a prostituição possa surgir agora mascarada de “trabalho sexual” e os proxenetas mascarados de “empresários independentes”, porque em todo o caso não são os direitos das pessoas prostituídas que estão a ser defendidos, mas sim uma aceitação moral da prostituição com o objectivo de facilitar o crime e a obtenção de lucro.
Os argumentos usados por muitos movimentos que se auto-intitulam feministas e de esquerda são os mesmos que os usados por governos e lobbistas para legalizar o comércio de mulheres, pelo que também aqui se verifica quem de facto lucra e beneficia com a legalização do lenocínio e com a deturpação do conceito de prostituição e de pessoa prostituída, que passa de vítima a empoderada – sem nunca se libertar das suas grilhetas.
Do paraíso ao inferno: cai o império do sexo na Holanda
O exemplo do modelo da Holanda, primeiro país a legalizar a prostituição na Europa, os bordéis, a reconhecer o sexo como trabalho e a descriminalizar os proxenetas – e tantas vezes usado como inspiração para os projectos de lei que também aqui em Portugal surgem – pode, hoje, ajudar a desconstruir as falácias dos “nobres” desejos que parecem motivar alguns, da direita à esquerda.
Ao longo dos anos, desde 2000 – ano da legalização – foram sendo feitos várias investigações, levadas a cabo pelo Ministério da Justiça e pela polícia nacional daquele país. De todos os objectivos a que a legalização da prostituição se propunha, nenhum se conseguiu cumprir.
A maior parte da indústria do sexo continua a funcionar fora do controlo do Estado holandês; não se afigura possível destrinçar quem se prostitui “voluntariamente” de quem é forçado; o controlo da idade, posse de autorização de residência e de trabalho são controlados pelos bordéis, pelo que também não é possível encontrar ali os menores de idade prostituídos, fugindo por isso, também estes, ao controlo estatal; não se encontrou melhoria significativa na condição das mulheres na prostituição, sendo que a única alteração foi no bem-estar emocional, que diminuiu; não foi possível separar o tráfico da prostituição, porque é impossível distinguir prostituição “voluntária” de prostituição forçada e o número de respostas para a saída da prostituição dimiuniu.
A aplicação da lei na Holanda centra-se, no essencial, nos bordéis legais, onde compete à polícia municipal fiscalizar; no entanto, apenas metade desta polícia está mandatada para investigar tráfico de seres humanos, já que a competência é da polícia nacional, por se enquadrar no crime organizado. A avaliação governamental da Holanda é a de que se considera problemática a avaliação do cumprimento da lei.
Ou seja, o exemplo mais saudado pelos defensores da legalização da prostituição – e à semelhança de outros países onde esta foi legalizada – serve, hoje, mais a perspectiva abolicionista do que a que pretendia suportar. Estes países encontram-se, agora, entre grandes contradições por resolver, na tentativa de reverter parte ou todo o seu processo de legalização.
Outros exemplos há de países ou regiões que, fruto da legalização do lenocínio, ao invés de conseguir diminuir o preconceito e os julgamentos morais que recaem sobre as mulheres prostituídas, regrediu quanto à leitura do papel social das mulheres no geral, dividindo-as entre “as prostitutas” e as “mulheres para casar”. Aumentou, assim, o machismo, a misoginia e as outras violências contra as mulheres, fazendo regredir conquistas e direitos à boleia da normalização do sexo enquanto serviço prestado aos homens, com um impacto tremendo nas gerações mais novas no que aos direitos das mulheres diz respeito.
Acrescentem-se ainda os dados que chegam da violência contra as mulheres prostituídas em regime de “legalidade”, como os de um inquérito conduzido em nove países e que envolveu 854 pessoas prostituídas, onde 73% reportam ter sido alvo de violência e 57% de violação. De entre estas 57%, mais de metade foram violadas mais de seis vezes. De fora das propostas de lei para a legalização do lenocínio ficam sistematicamente também os dados sobre a relação entre a prostituição e a toxicodependência (quer avaliando as causas, quer as consequências) ou a doença mental, com especial incidência para sintomas de Transtorno de Stress Pós-traumático nas vítimas de prostituição.
Os proxenetas não marcham ao nosso lado!
Importa, em Portugal, meter prego a fundo na rejeição das pretensões de legalizar o que não pode nunca ser legalizado: a exploração, a violência e o crime. Precisamos de lutar pela efectiva emancipação da mulher, que passa também por se ver livre da prostituição e de todas as formas de violência e exploração. E para essa luta são chamadas todas as mulheres que defendem direitos iguais e o fim de todas as formas de violência: marchamos juntas, mas os proxenetas não marcham ao nosso lado!
Que se reforce o Serviço Nacional de Saúde para que cumpra melhor o seu papel de atendimento universal. Forme-se, sempre que necessário, os profissionais de saúde e das forças de segurança para que sejam capazes de melhor atender as pessoas prostituídas. Reforcem-se e universalizem-se os programas de saída para pessoas prostituídas. Aumentem-se salários; garantam-se direitos de maternidade e paternidade; crie-se uma rede pública de creches; acabe-se com as propinas; disponibilize-se mais e melhores consultas de planeamento familiar; implemente-se, de uma vez, de forma séria a educação sexual nas escolas: em suma, garantam-se direitos, liberdades e garantias.
Lutemos contra as mais profundas causas da prostituição: a exploração do homem pelo homem e a opressão. Não existe liberdade para decidir quando o que não há é opção. A liberdade do ser humano está na sua dignidade, e nunca na sua alienação.
3 Julho, 2022 às
Estou inteiramente de acordo e este manifesro deve ser divulgado. O meu partido, o Partido Comunista, nunca aceitou a tese de uma dita esquerda que defende a prostituição sob vários pretextos falaciosos que na prática consagram uma das mais vis formas de exploração humana. Não admito que a prostituiçpão seja defendida por uma esquerda inspirada nos valores da defesa dos seres mais desprotegidos como as prostitutas. O lenocídio é uma atividade miserável que devia ser punida.