Quando a corja topa da janela

Nacional

Para além de entronizar António Costa como Mário Soares reencarnado e novo faraó do partido, todo o congresso do PS foi jogos de luzes, teatros de sombras e sinais de fumo. Um rolar em falso sobre a política para dar uma cambalhota populista e acabar estatelado no marketing. Afinal, o poder não espera sentado. Sócrates ainda mal chegou a Évora e, como dizia o Zeca, já a corja topa da janela.

Polido, consensual e sem tiques estalinistas, António Costa varre os seguristas, cala os socráticos e consegue votações na ordem dos 90% para praticamente tudo. Saciada a sede venatória e com a máquina partidária nas mãos de um homem, o Congresso do PS abre e fecha numa bizarra encenação panegírica de verbos e adjectivos: “encorajar”, “sólido”,”mobilizar”, “moderno”, “acreditar”, capacitar” mais três ou quatro ideias mais ou menos concretas sobre o IVA, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o IMI e a extensão do subsídio de desemprego. Durante dois dias, o espectáculo de publicidade só discutiu uma coisa a sério: como chegar ao poder e que novos nomes devem substituir os velhos. Já sobre questões essenciais, como a nacionalização de sectores chave da economia, a renegociação da dívida ou a reposição dos direitos e salários roubados, nem uma palavra. No fundo, a única diferença entre um Congresso do PS e um concurso miss mundo é que estas têm que tentar explicar como é que vão salvar o mundo enquanto que Costa não tem que explicar nada, só tem que parecer.

Nessa aparente parecença consiste a famigerada viragem à esquerda do PS: uma tentativa de escapar ao fatídico esvaziamento eleitoral do seu irmão helénico PASOK e evitar a necessidade e a trabalheira de ter de renascer num corpo de Syriza. Então, cita-se o Papa, finge-se que se cerra o punho e atiram-se para o ar os mesmos lugares-comuns que de que o PSD fará bandeira: o combate às “assimetrias e desigualdades” e ao “flagelo do desemprego”, a necessidade de estimular o crescimento e valorizar os nossos recursos, etc. Depois, fazem fila os homens de esquerda do homem que “Sócrates mandou avançar”: temos Alegre, que votou a favor de todas as alterações constitucionais; temos Galamba, que acha que a culpa dos baixos salários é dos sindicatos, temos Pizarro, no Porto se alia à direita mas para o Governo nunca, por “diferenças civilizacionais”.

O palco está montado e Costa emerge como o eterno filho pródigo, que retorna para devolver PS às suas supostas raízes de esquerda, a saber: o socialismo na gaveta, as privatizações, os congelamentos dos salários, os ataques à contratação colectiva, o fim da reforma agrária, as benesses fiscais para os grandes grupos económicos, a nacionalização de bancos falidos, a repressão policial, o aumento dos impostos para os trabalhadores, a elitização do ensino, os recibos verdes, as taxas moderadoras, o aumento do custo de vida, a destruição da indústria, da agricultura, das pescas e da soberania, etc.

Mas a velha mascarilha de esquerda new age não serve só para enganar o povo, é uma tentativa de condicionar os restantes partidos, começando pelo PCP e acabando no BE e no PEV, a assinar um cheque em branco a troco de uns lugares no Governo. Enquanto Rui Tavares, o Paulo Portas de António Costa, Drago, Oliveira e amigos não pensarão duas vezes. Valha-nos o PCP, que já veio reafirmar que não discute lugares, discute programas.

Mais ainda, o linguajar de esquerda é uma resposta eleitoral à decrepitude moral que PS, PSD e CDS-PP atingiram, perpetuamente enlutados de escândalos, denúncias, vergonhas e, mais recentemente, prisões. O antigo comprometimento destes partidos, do PS em particular, com a corrupção sistémica do capitalismo português reclama uma lavagem à cara dos eternos representantes dos banqueiros e do grande capital, uma precoce roupagem primavera-verão, que venha refrescar o brejo que sempre foi o Partido Socialista e capitalista ao mesmo tempo. É a mesma corja que topa da janela. E como lembra o Zeca, o que faz falta é avisar a malta.