Há tempos atrás um grupo de alunos de uma escola onde é professora uma grande amiga minha visitou o museu da presidência da República. A visita foi guiada e a senhora que acompanhava o grupo teve, a dado momento, a infeliz ideia de referir que Portugal não entrava em guerra há cerca de 40 anos. Um dos alunos (do 1º ciclo) respondeu (e bem) que o que a senhora dizia não era verdade. A senhora espantada ficou sem perceber a reacção do rapaz e por isso ele teve que explicar-lhe que Portugal é membro da NATO e que a NATO tem andado sempre em guerra nos últimos anos.
O tema da vinculação de Portugal à NATO parece ser um não-tema, ou um tabu, num país cuja constituição explicita (no seu artigo 7º) que “Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos”. Ora, se a NATO não é um bloco político-militar (tal como a União Europeia, já agora…), então não sei bem o que será.
Uma das guerras de agressão – agressão pura e dura – levadas a cabo pela NATO nos últimos 20 anos teve lugar no que sobrava da antiga Jugoslávia: o território então formado pela Sérvia, Kosovo e Montenegro. Portugal fez parte da “coligação” de países que se envolveram activamente numa guerra desencadeada à revelia das Nações Unidas e contra a sua Carta. Um envolvimento que envergonhou o país, vitimou soldados portugueses e desrespeitou em toda a linha a Constituição da República. Era primeiro ministro o “socialista” António Guterres.
A insustentável leveza da minha consciência
A agressão da NATO à Jugoslávia iniciou-se a 24 de Março de 1999 e durou, se a memória não me falha, cerca de três meses. A Europa assistiu então, boquiaberta, ao bombardeamento de uma grande capital europeia. A justificá-lo uma teia de mentiras (a principal delas a propósito de uma suposta “limpeza étnica” dos albaneses do Kosovo), manipulações, exageros, cumplicidades entre media, NATO, União Europeia e governos nacionais. Na verdade as motivações eram outras e passavam pela finalização do processo de completo desmembramento da antiga Jugoslávia (a “balcanização” dos Balcãs, passe a redundância…), pelo enfraquecimento das últimas bolsas de influência russa (Iéltsin, não sei se sóbrio ou alcoolizado, ainda veio prometer ajuda à Sérvia para depois recuar perante a pressão da NATO) e sobretudo pelo controlo de recursos, mão-de-obra e espaços vitais ligados aos corredores de escoamento de petróleo e outras matérias-primas.
Lembro-me bem de todo esse contexto. E não me pesa a consciência: estive activamente envolvido na denúncia da guerra e na luta pela Paz. “Portugal, fora dos Balcãs” era a palavra de ordem de milhares e milhares de manifestantes, pessoas comuns que de alvo ao peito protestaram contra os bombardeamentos em várias datas e locais, incluindo junto à embaixada norte-americana em Lisboa. Foi, temo bem, o último grande movimento anti-guerra imperial e pela Paz desenvolvido em Portugal.
A denúncia de 1999 fazia-se contra a violência de uma guerra que teve como alvos preferenciais infra-estruturas civis (como a televisão sérvia ou hospitais) e as suas mentiras, contra a manipulação mediática que também em Portugal se fez sentir (e de que maneira…) [1]. Fazia-se igualmente contra a utilização de armas de urânio empobrecido, bombas que não apenas causaram vítimas durante o período de agressão, mas que deixaram dolorosa memória desse período em muitas famílias sérvias e kosovares. Para muitos naquela região a guerra continua: contra o cancro e os problemas de saúde pública causados pela utilização de armas nucleares.
O urânio empobrecido continua aliás a ser utilizado pelas tropas da NATO. Na Líbia, por exemplo. As consequências serão colhidas pelas próximas gerações do país “libertado”. O efeito Bassorá, já sentido na Jugoslávia, chegará certamente às cidades líbias onde a “liberdade” das petrolíferas foi imposta com recurso a bombas radioactivas.
Sobre o assunto aconselho dois livros: “The new rulers of the world” (2002), de John Pilger, e “Armas de urânio: Destruição sem regresso” (2001), de vários autores editado pelas Edições Avante!. No que respeita à guerra de 1999 deixo o link para a reportagem “ЗАШТО? WHY? Stories of bombed Yugoslavia“, da responsabilidade da jornalista norte-americana Anissa Naouai (RT).
Quinze anos depois recordo com grande nitidez, com surpreendente detalhe, aqueles dias de Março de 1999. Do que fiz, disse, escrevi e gritei não tenho vergonha alguma, bem pelo contrário. Não sei se Guterres, Jaime Gama, Bill Clinton, a senhora Albright ou Javier Solana poderão dizer o mesmo. Eles que desencadearam uma guerra que inaugurou o conceito de “bombardamento humanitário”. Como seria interessante confrontá-los com o sofrimento que conscientemente causaram há 15 anos atrás…
Notas:
[1] Sobre o tema específico do bombardeamento do edifício central da televisão, em Belgrado, aconselho a leitura de “Guerras da Informação“, de Carlos Santos Pereira.