Quantos pobres são precisos para fazer um excedente?

Nacional

O canto do cisne socialista aí está: um excedente orçamental entonado com altivez e vaidade, com pompa e circunstância, tamanhos números nunca vistos em democracia, mas bem sentidos na pele, ora não fosse essa folga arrancada do suor dos trabalhadores portugueses e do assalto aos serviços públicos e com o seu desmantelamento.

O contexto e o paradoxo

Com a faca e o queijo na mão, leia-se com o momento político e económico a seu favor, o Partido Socialista, com maioria governativa resultante da correlação das forças políticas estabelecidas em Assembleia da República nos princípios de 2022, determinou uma interrupção no caminho de recuperação de rendimentos e valorização do trabalho dos períodos anteriores, sobretudo, o trilho alternativo edificado entre 2015 e 2019. Desde então, demonstrando a sua intrínseca caracterização social-democrata, a governação socialista recupera para a centralidade da sua acção política a concepção de contas certas, em muito assentes nas baixas taxas de execução orçamental, e que aprofundaram as questões com que já se viam confrontados os serviços públicos do país. Com o chumbo do Orçamento do Estado, anunciado como o mais à esquerda de sempre, e nessa instrumentalização de espectro político, sabendo um relativo grau de apoio popular à solução de 2015, aliado à suposta necessidade de uma estabilidade política e governativa, o Partido Socialista capitaliza e obtém uma maioria absoluta em 2022.

Libertado das amarras que o traziam à esquerda da conversa, aliás conjuntura à altura amplamente celebrada pelo grande capital e suas confederações patronais, o Partido Socialista assiste impávido e sereno a um processo em crescendo de carestia de vida, promovendo sobre o empobrecimento generalizado dos portugueses políticas que deram corpo ao actual excedente orçamental, fundamentado em três motores: a crise inflacionista, as taxas de juro e a carga fiscal sobre o trabalho.

Em larga medida este é o PS de sempre, e o único, correspondendo com fidelidade canina aos desideratos dos senhores do dinheiro, aos ditames das instituições europeias e ainda às suas próprias correntes neoliberais, promovendo a acumulação indevida de riqueza, que contribuiu para um período de fomentação de incomensuráveis lucros para uns, e agravada com medidas esporádicas e de carácter extraordinário, que apenas resultaram no retraimento dos rendimentos e aumentando os ditos lucros à custa do valor do trabalho e dos trabalhadores.

À expectável, e reiterada, traição à classe trabalhadora por parte dos socialistas, arrastou-se, pelo passado recente de ruptura e alianças precárias contras as políticas de direita e de agressão económica, o movimento de classe e as suas vanguardas políticas para o fino gelo de novo processo eleitoral, em muito legitimado pela fragilidade corrupta aburguesada, num momento político recapeado pelo descontentamento generalizado das famílias portuguesas, mas também impulsionado por três rolos compressores do populismo e do neofascismo: a sedenta comunicação social capitalista, a vampiresca onda internacional fascista e o esvaziamento da tradicional social-democracia e da sua incapacidade de respostas aos problemas concretos do país e do povo. E ei-los, que dos resultados previstos, mais ou menos ou assim-assim, uma nova correlação de forças negativa aos interesses do país, dos trabalhadores, uma maioria reaccionária que, cedo ou tarde, tanto quanto dure o admirável excedente, abrirá novas portas para o ataque à revolução e às suas conquistas.

O custo deste excedente

A vida das pessoas não está melhor, mas a do País está muito melhor, afirmou em 2014 o actual primeiro-ministro. A frase, lembrando outra – deixou os cofres do estado cheios – é reveladora mesmo face ao cenário actual, pois parte de uma premissa construída com o intuito de antropomorfizar e humanizar algo tão abstracto e conceptual como a vida de um país em contraposição com o quotidiano de um povo. Porém é certo, e sabido, que não há memória da pessoa país angustiar horas numa sala de espera de um serviço de urgências, ou meses por uma vaga num bloco operatório, não há lembrança da pessoa país frequentar escolas sem professores a todas as disciplinas, nem se sabe de tal coisa como a pessoa país fazer contas à vida para encontrar casa com renda acessível, e encontrando-a sobrar-lhe o suficiente para se aquecer no inverno e, sobretudo, nunca se viu a pessoa país a empobrecer a trabalhar e a passar fome, que sempre há mais mês pela frente do que dinheiro embolsado.

O projecto de liberalização económica em curso e as políticas de contas certas, através da destruição dos sectores fundamentais e das estruturas públicas do estado, acarretaram nos últimos anos graves consequências em várias dimensões da vida social, laboral e colectiva do país. O abandono do projecto do Serviço Nacional de Saúde, com o seu desmantelamento e encerramento compulsivo valências, unidades e especialidades, a renúncia ao pilar da Escola Pública, com o deterioramento das suas instalações e a desconsideração ao corpo docente, a inocuidade nas políticas públicas para o transporte e mobilidade, o aprofundar da crise na habitação por opcional inépcia governamental, a promoção da precariedade em vários sectores, em particular na cultura e ciência, o definhamento da administração pública, e o ataque aos rendimentos com a perda generalizada do poder de compra.

E assim se construiu um excedente, com desinvestimento, cativações e empobrecimento, como cantava Fausto, e assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal, um excedente orçamental assente num ataque sem precedentes ao estado de direito, ao estado social e ao estado disto tudo, que só não é mais profundo e determinado, que essa vontade manifestada está no projecto político em vigência, pela memória colectiva e apreciação do povo português pelas conquistas de Abril.

A reversibilidade da hora

A economia deve ser uma ferramenta ao serviço dos povos, e não um instrumento coercivo e penalizador na gestão financeira das suas vidas ou, pior, um travão de classe às suas aspirações e anseios. Tamanha contradição de que um país possa estar melhor, com uma concretizada salubridade económica, mas não a gente que nele habita, contradição avolumada perante a concepção trazida nas últimas semanas, que trouxe novo significado político ao excedente orçamental, afirmando-o como critério de maior liberdade de escolha nas opções governativas de futuro. Porém, o que fica de conclusão é que se trata efectivamente do seu contrário, de que as opções governativas, e neste caso sobre o ponto de vista de gestão orçamental, é que determinam as liberdades de escolha de todo um povo, e até ver, liberdade a sério nunca adveio de um cofre cheio, mas sempre de o seu conteúdo ser redistribuído e vertido em matérias salariais e laborais e no investimento da resposta pública do estado nos mais variados sectores.

A historicidade da política económica, e das suas opções, tem vindo a comprovar que o caminho para a sustentabilidade do estado social e a dinamização da economia se edifica pelo caminho das políticas de valorização salarial e combate à precariedade, em paralelo com a execução orçamental em favor do reforço dos sectores estratégicos e de resposta social do estado, bem como do aumento do investimento público. Relembre-se a ruptura com as políticas de direita em 2015, numa retoma de valorizações e reconquista de direitos, que veio a culminar com o internacionalmente conhecido, pese embora curto e insuficiente para os trabalhadores, como o milagre económico português. Contudo, a tudo isto acresce, com a devida perigosidade inerente, a viragem governativa ainda mais à direita, que tratará de colocar esta margem orçamental ao serviço do seu interesse político e de quem o sustenta e financia, que sem recorrer a grandes exercícios de futurologia, capitalizará em seu favor atribuindo sectorialmente umas migalhas, tentando legitimar a governação e, legitimada que estará, aprofundando então de seguida os problemas já dinumerados, com a descapitalização do património do estado e dos seus serviços, para grande gáudio da iniciativa privada do grande capital.

É, agora, inegável que a resposta tem, sempre, de ser dada no âmbito do combate político nos seus mais variados patamares, enaltecendo a luta de classes como determinante para que qualquer modelo de organização de estado corresponda ao interesse de quem trabalha, e para que o seu correspondente orçamental aponte para uma economia soberana, independente e redistributiva. Isto é, perante os três rolos compressores com que se defronta o país e o povo, a resposta deverá ser dada na mesma exacta medida de luta e quantidade: a) com o reforço institucional e partidário do comunismo como vanguarda organizada dos trabalhadores e dos seus interesses, b) com o seu movimento sindical colectivo e unitário, como instrumento de luta e reivindicação, c) com a mobilização e a unidade social e congregadora em torno do projecto comum e transversal da Revolução e da Constituição da República Portuguesa.