Que idade tem a tua fome?

Nacional

“Um tostãozinho para a cascatinha!, Um tostãozinho para a cascatinha!” Era assim que, quando era miúdo, por duas ou três vezes – não mais – ali na Rua Óscar da Silva, em Leça da Palmeira, eu e os meus vizinhos abordávamos as pessoas que passavam, com um santo qualquer comprado à pressa no Senhor de Matosinhos. Não era empreendedorismo infantil, era só mesmo para ganharmos uma moedas, que serviriam para trocar por chicletes Gorila na loja da Ana Maria. A cascata nem era elaborada. Era um cartão pousado no passeio junto à entrada da ilha, umas ervas para enfeitar, se calhar, que íamos buscar ao quintal do Guarda Fiscal. Fazia-mo-lo pelo doce. As chicletes eram mesmo boas. Duravam pouco mas dava para nos alegrar os dias.

Era uma forma de passarmos o tempo quando falar com estranhos ainda era um perigo mas era escondido. Eu nunca passei fome mas sei que os meus amigos passavam. Às vezes, iam buscar flores – umas vezes novas, outras meio murchas – que davam à minha mãe, que retribuía com bolachas e pão com manteiga. Um luxo por aquelas bandas e estamos a falar no início dos anos 90, não estamos a falar do tempo do fascismo.

Daqueles luminosos anos 90 que se seguiram ao governo do Bloco Central, que alguns saudosistas de passados recentes tentam agora recauchutar. Adiante. Eu sabia que eles tinham fome e era um problema para mim. Porque eu nunca tive fome. Valia a escola e o leite com chocolate. Mais tarde, passaram a incluir pão no lanche que ofereciam a meio da manhã – e que nos roubava parte do recreio.

Hoje, a fome afecta, pelo menos, uma em cada três crianças em Portugal. Pelo exemplo que tive toda a vida, se há uma criança com fome, significa que há pais com ainda mais fome. Pais desempregados a quem cortam no subsídio de desemprego. Pais que já não têm direito ao subsídio de desemprego nem ao subsídio social de desemprego. Pais que já não têm direito ao RSI, para gáudio das mentes mais católicas do PSD e do CDS, a quem os pobres dão jeito para poderem realizar grandes jantares de angariação de fundos – a ironia destas coisas é uma merda. E pais que trabalham e que, mesmo assim, continuam em situação de pobreza.

As cantinas de várias escolas vão estar abertas nas férias do Natal para dar de comer a famílias de alunos. Estamos já num outro nível. Há uma sucessão de notícias, nos últimos dias, que nos deixariam de boca aberta se fossem na Grécia. Mas são aqui ao lado e há qualquer coisa que nos faz ter medo do que está tão perto. Deve ser um mecanismo de defesa. Olhar para o lado e fazer de conta que não vimos.

Depois, chegamos a casa e fazemos uma chamada de valor acrescentado para acabar com a pobreza infantil. Como se acabar com a pobreza infantil fosse uma coisa distante das políticas com que nos tentam cilindrar todos os dias. Mas, lá está, devemos ter qualquer coisa cá dentro destas cabeças que nos faz sentir melhor se pagarmos IVA por uma chamada – IVA que servirá para resgatar bancos enquanto se cortam os apoios sociais – do que percebermos que, mais tarde ou mais cedo, este sistema que nos enfiam pela boca dentro colapsa e continuaremos de estômago vazio, quando já não pudermos desviar o olhar para fazer de conta.

A miséria e a fome não têm idade. Por cada criança que passa fome há pais desesperados por não poderem satisfazer as necessidades mais básicas dos filhos. E isso deve ser a coisa mais angustiante do mundo. Merda para a caridade. Não é com campanhas de sensibilização que se mata a fome. A fome mata-se com a garantia de direitos básicos do ser humano. Seja aqui ou em qualquer ponto do Mundo.

A fome combate-se com a democracia, com o cumprimento de uma Constituição em que alguns vêem um obstáculo ao desenvolvimento económico, enquanto dão pancadinhas nas costas dos Dias Loureiro e Ricardo Salgado deste país.

Não é inevitável. Inevitável é travar quanto antes, da forma que melhor servir os interesses do povo, as políticas desenvolvidas ao longo destes 38 anos de desastre que os suspeitos do costume, de braço dado, nos têm proporcionado.