Sem anos de solidão

Internacional

Eu podia contar-vos tantas coisas dessa terra que nunca pisei mas da qual tanto me falaram. Desse país com nome de conquistador onde os seus habitantes nunca se vergaram ante a opressão. Da Colômbia em que a oligarquia rasga as veias de um povo que nunca deixou de amar no meio da cólera de todos os tempos. Foi para arrancar essa terra e essa gente do silêncio podre que Gabriel García Márquez nos trouxe Macondo. É que Gabo nunca escondeu que pouco recorreu à imaginação. O que lhe custava era a invenção de recursos para fazer da realidade algo verosímil.

Cobiçado pelas elites políticas para fotografias de circunstância, Gabriel García Márquez nunca deixou de estar ao lado do seu amigo Fidel Castro. Muitas décadas antes, quando ambos eram estudantes universitários e sem saberem da existência do outro, participaram na revolta que sucedeu ao assassinato do candidato presidencial Jorge Eliécer Gaitán. Depois da revolução cubana, Gabo não hesitou em participar na construção da agência de notícias Prensa Latina.

Por isso, e sabendo que cabe ao leitor apropriar-se das palavras para construir um mundo que não é repetível senão na sua cabeça, Macondo pode ser quase tudo. Só não pode ser é travestido pelas homenagens descomprometidas de quem quiser apagar o massacre contra os trabalhadores da bananeira United Fruit Company ou o fuzilamento de tantos liberais como Aureliano Buendía. Ou que a paixão das mulheres e homens livres não é compatível com os altos muros do conservadorismo. E que a guerra pode muita coisa mas o amor pode sempre mais.

Também para mim o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las precisava de apontar-lhes o dedo. Fui um dos muitos que perderam noites de sono para caminhar ao lado do Gabo. Não teria mais do que doze anos quando um dos meus tios me ofereceu num aniversário o Cem Anos de Solidão. Essa edição de que me alimentei durante dias desapareceu nesse cemitério onde jazem todos os livros que se emprestam.

Foi Gabriel García Márquez que me fez atravessar o oceano e com a imaginação pisar pela primeira vez a América Latina. Acrescentou-me ao meu pequeno mundo adolescente, novos mundos e, de certa forma, deu sentido a coisas que começavam a germinar em mim e que eu não compreendia. Num tempo em que sem internet tudo demorava mais a descobrir, e por isso conhecer sabia ainda melhor, Che Guevara parecia-me uma personagem plausível de aparecer nas páginas do meu escritor preferido. E durante muito tempo, acompanhava sofregamente todas as notícias que chegavam do sequestro da Embaixada do Japão, em Lima, pelos guerrilheiros do Movimento Revolucionário Tupac Amaru. Era como se tudo fizesse parte do mesmo mundo. Do mundo dos livros do Gabo.

A genialidade de García Márquez é produto dessa terra regada pelo sangue de milhares de colombianos. Mais do que debater sobre a originalidade da sua obra e até do realismo mágico – que teve antecessores como Alejo Carpentier – há que olhar para o essencial e perceber que do que Gabriel García Márquez denunciou, boa parte continua intacta na América Latina. Às nossas casas continua a chegar fruta da companhia norte-americana Chiquita arrancada às bananeiras colombianas com o mesmo cheiro a morte que se despega das páginas de Cem Anos de Solidão. E não é por acaso que o pai de Macondo e filho de Aracataca nunca escondeu a sua simpatia pela insurgência colombiana. É que daquelas metralhadoras continua a fluir a mesma esperança que transportavam os combatentes liberais.

Entre a cumbia e o vallenato, com o sangue quente do calor caribenho, o homem que um dia veio a Portugal sentir a revolução, e dizer-nos que estávamos para a Europa como a América Latina para os Estados Unidos, continuará a iluminar-nos através da literatura e do jornalismo. Por isso, e porque as suas personagens continuam vivas, o Gabo viverá entre nós sem anos de solidão.