Sobre o glifosato e a Bayer.

Nacional

Desculpem-me os leitores do manifesto74 por vir usar o vosso espaço com uma clarificação que passa perto de uma defesa pessoal, mas que, como compreenderão, é não só necessária, como colectiva.

O jornal i decidiu, no âmbito da campanha mediática em curso contra a solução governativa para que o Partido Comunista Português contribuiu, fazer uma delirante notícia com direito a meia capa. O correio da manhã, esse produto tóxico em papel que devia constar na categoria 2A da classificação da IARC – International Agency for the Research on Cancer – acompanhou de imediato. A origem da notícia está numa abstrusa manipulação de um artigo que escrevi neste blog levada a cabo por militantes e dirigentes do BE nas suas páginas de Facebook, onde me acusavam de insinuar que o BE teria recebido dinheiro da Bayer para propor a proibição do Glifosato. O i e o CM limitaram-se a aproveitar a boleia.

Então vamos ao que julgo interessar e poder contribuir para se perceber todo o enleio:

O glifosato é um composto químico classificado na lista 2A da IARC, ou seja, classificado como “potencialmente cancerígeno”. Isto significa que, em determinadas circunstâncias, perante determinadas concentrações, o produto pode ter efeitos cancerígenos. Nessa lista está o café quente (acima de 65º), a carne vermelha, praticamente todos os insecticidas domésticos e profissionais, a profissão de vidreiro ou de cabeleireiro, por exemplo.

O glifosato foi introduzido no mercado como herbicida pela Monsanto em 1974. A patente do glifosato rendeu milhões a essa multinacional, principalmente porque essa multinacional desenvolveu várias sementes geneticamente modificadas cuja principal característica era serem resistentes ao glifosato. Significa isto que a semente era vendida por ser resistente a um herbicida, o herbicida matava portanto as daninhas todas, sem prejudicar a cultura principal. Claro que com o tempo, as daninhas desenvolveram resistência ao glifosato e, como resposta, era necessário usar cada vez mais glifosato. A Monsanto tinha descoberto uma mina de ouro: sementes resistentes a um herbicida e o herbicida, tudo vendido pela mesma companhia.

Além dessa utilização, o glifosato é também utilizado no controlo de daninhas em espaço público, como forma de impedir o desenvolvimento de pragas, como as de carraças e outros insectos, alguns deles vectores de doenças de animais e humanos.

Ora, tal como todos os compostos, importa sempre gerir o risco. No caso da utilização do glifosato para controlo de daninhas em espaço público, devemos ponderar: é preferível ter carraças ou glifosato? é preferível usar algum outro composto alternativo? E avaliar a resposta a cada uma dessas perguntas.

Mas a verdadeira questão, como já devemos ir percebendo ao longo desta leitura, está na utilização de transgénicos resistentes a compostos sintéticos, sejam pesticidas, herbicidas, ou insecticidas. A utilização dessas sementes pode ser rentável para a Monsanto, para a Bayer, para a Syngenta, etc.. pode até, em alguns casos, ser rentável para o produtor que consegue volumes de produção como não podia ter sem a utilização dessa semente, mas não é certamente rentável para o planeta, para os solos, para a biodiversidade, para a saúde pública, etc. Ora, o PCP apresentou uma proposta para a proibição de cultivo de variedades vegetais geneticamente modificadas que foi sendo sucessivamente rejeitado desde a X legislatura por PS, PSD e CDS.

Mas em torno do glifosato colocaram-se outras questões. Com o alarme público que vem sendo alimentado desde 2014, existe uma preocupação generalizada em torno do composto, muitas vezes sem ter plena consciência do grau de risco a que se refere o “potencialmente cancerígeno” que, como já vimos, coloca a carne vermelha e o café quente exactamente no mesmo patamar que o glifosato. Esse alarme público é também resultado do normal lobbying junto dos orgãos de poder e surge só após a caducidade da patente da Monsanto, em 2001 e curiosamente, após o desenvolvimento do Liberty e do Ignite, compostos com que a Bayer visa substituir o Roundup – nome comercial do glifosato. Essas manobras, se não ligadas à ciência podem provocar a proibição de um composto de domínio público, barato e já experimentado pelos humanos para que seja substituído por um composto patenteado, caro e cujos efeitos na saúde são ainda desconhecidos. Uma vez mais, não significa que não se deva substituir, significa que se devem pesar estes riscos, um a um.

No entanto, com a alimentação da histeria colectiva em torno do glifosato patrocinada também pela comunicação social dominante, a Monsanto vê desvalorizar o seu principal activo: o glifosato e as sementes que lhe resistem. Ora, não podendo o glifosato ser utilizado, as sementes também se tornam inúteis. Podemos, neste momento, colocar a questão: mas a substituição do glifosato pode ser feita por vinagre diluído ou por água fervente. Para isso, a minha resposta é só: “ya, meu, então não se está mesmo a ver!?”. A resposta a uma proibição do uso do glifosato na agricultura industrial seria apenas uma: encontrar uma alternativa para a semente transgénica e para o herbicida. Curiosamente, só existe uma alternativa ao produto da Monsanto: a da Bayer, chamada glufosinato de amónio e comercializada sob o nome de liberty ou ignite.

Ora, quando em Março, o PCP foi acusado de defender a Monsanto, com insinuações várias de dirigentes do BE, quer no facebook, quer no esquerdapontonet, os órgãos de comunicação social limitaram-se a associar o PCP a um produto potencialmente cancerígeno sem tentar explicar uma única vez a posição do PCP e sem ouvir sequer a direcção do PCP ou o Grupo Parlamentar. Nessa altura, uma das muitas acusações lia-se assim: “PCP junta-se a PSD e CDS na defesa da Monsanto. Hoje, inacreditavelmente, o PCP juntou-se ao PSD e ao CDS para chumbar o projeto de lei do Bloco para proibir o glifosato no espaço público. A Monsanto agradece.” Esta foi produzida por Nelson Peralta, mas podíamos encontrá-la no mural de João Vasconcelos, deputado do BE.

Nessa altura, o PCP emitiu um comunicado, ignorado por toda a comunicação social. Ao mesmo tempo, o PCP, não escondendo que o problema do uso de químicos sintéticos na agricultura vai muito além do glifosato, pois que a demagogia é inimiga da sensatez, apresentou um projecto de resolução que visava dar a resposta necessária e ampla. Esse projecto foi igualmente ignorado pela comunicação social. Era muito mais simples, fácil e útil insistir na absurda ideia de que o PCP estava do lado da direita por estar feito com a Monsanto ou por mero sectarismo. Sectarismo esse que, a existir, não explicaria por que raio se teria o PCP abstido num projecto do BE sobre glifosato uns meses antes. A diferença é que o primeiro projecto tinha um conjunto medidas, entre as quais recomendar ao Governo Português que assumisse uma posição favorável à não renovação da licença do glifosato no plano da União Europeia, e o projecto do BE de Março visava proibir a utilização do glifosato no espaço público imediatamente. Ora, para ficar claro, o PCP votou a favor do projecto do Partido Ecologista “Os Verdes” que recomendava a não renovação da licença do glifosato. Logo aí ficou percebida a posição do PCP: apoiar soluções graduais que visem a não renovação da licença do glifosato mas demarcar-se de aventuras que visassem a proibição imediata, sem alternativas. O PCP preferiu a seriedade ao facilitismo.

Mas esse facilitismo pelo que obtou o BE não pode deixar de ser enquadrado na onda que beneficia a Bayer. Ou seja, o BE, tal como em muitas outras ocasiões, preferiu alinhar pelo mediatismo da questão do que pela defesa da saúde pública. A ser proibido, sem mais, o glifosato, que fariam as autarquias ao stock ja adquirido? como controlariam as daninhas? como impediriam pragas de carraças, por exemplo? Claro que pode haver alternativas, mas devem ser avaliadas e planificadas. O mais grave é que o BE sabia desde o início que o PCP tinha essa posição. O BE modificou o seu projecto de maneira a fazer com que o PCP alterasse o seu voto de abstenção para contra, e agendou o debate com essa intenção. O BE podia ter pedido a baixa do projecto sem votação, com o apoio do PCP, para que o projecto pudesse ser mais debatido. Optou por não o fazer. Porquê? Simples: a sua intenção não era aprovar o texto, era obter o voto contra do PCP para poder fazer as acusações que fez depois. Curiosamente, quando o projecto anterior chumbou como resultado da posição do PS, o BE não dirigiu ao PS as acusações que dirigiu ao PCP. Critérios e amizades que se compreendem.

Chegados a este ponto, vamos ao que escrevi. “A Bayer tinha um produto caro que visava substituir um produto barato. Agora talvez o consiga fazer com o apoio da legislação feita ao sabor de interesses não anunciados. Se o BE recebeu ordens de alguém para propor em Portugal a proibição do glifosato, não poderemos saber, mas que houve quem lucrasse milhões com propostas desse tipo, lá isso houve. Criado o alarme em torno do glifosato, restou ao BE cavalgar o seu mediatismo e acusar os comunistas de defenderem a Monsanto e a utilização de produtos cancerígenos. Na sua estratégia de isolar constantemente o PCP, o glifosato foi um eficaz produto. A comunicação social encarregou-se de intoxicar a opinião pública com essa “nova propriedade” do glifosato e com o preconceito de que o PCP é um partido tão ortodoxo que defende que devemos todos morrer por exposição a produtos que provocam o cancro.”

No dia em que a Bayer anunciou a compra da Monsanto, manobra que o PCP denunciou logo em Março aquando da discussão do projecto do BE, limitei-me a mostrar que o BE, na sua marcha anti-PCP e na sua habitual cavalgada sobre a espuma do mediatismo, acabou por estar alinhado com a estratégia de uma multinacional que agora vai deter praticamente o monopólio mundial da agricultura e dos fitofármacos e pesticidas mais importantes. A Bayer adquiriu a Monsanto a um preço mais baixo do que podia ter adquirido, caso o glifosato ainda tivesse patente e legalidade com perspectiva de futuro. O glifosato será substituído pelo glufosinato de amónio, cujos impactos e efeitos cancerígenos ainda são desconhecidos por ter uma utilização menos disseminada e mais recente. Mas o problema continuará: as sementes têm os seus genes patenteados por grandes multinacionais que dominam a agricultura mundial com custos incalculáveis para o planeta e o ser humano, mas gerando lucros brutais. Em vez de usarem glifosato vão usar glufosinato de amónio e em vez de serem detidas pela Monsanto e pela Bayer, serão todas detidas pela Bayer.

Espero que resulte claro que a minha alusão ao “BE ter recebido ordens” era uma chamada de atenção para os pés de barro do BE no que toca às suas posições. Se o PCP foi acusado de defender a Monsanto quando não apoiou o BE, julgo que é legítimo dizer que esse argumento pode ser utilizado também para o BE quando contribui para o sucesso da estratégia da Bayer. Evidentemente, considero tão ridícula a acusação do BE ao PCP como a minha insinuação, todavia a minha insinuação surge nesse contexto com vista a demonstrar precisament isso. Mas o BE gosta pouco que lhe chamem as atenções: quer ficar bem nas fotografias do mediatismo burguês mas não quer assumir que isso tem custos políticos. Quando ficava bem dizer mal de Khadafi, o BE não hesitou em apoiar a intervenção militar no parlamento europeu., mas nunca quis assumir o sangue nas mãos pelas bombas que caíram na Líbia. Agora que ficava bem ser contra o glifosato, nada indica que o BE tivesse vontade de assumir que essa posição favoreceu a estratégia da Bayer.