Sobre o resultado das eleições

Nacional / Teoria

Perdi a conta ao número de variações de “o povo é burro e vota mal, agora vai ter o que merece, pobres de direita” que li no rescaldo das eleições.

Mas é claro que os pobres “são” de direita! Ao dominar a infraestrutura da sociedade, o capital domina também a sua superestrutura, tendo o monopólio da criação e circulação de ideias. A maioria das pessoas que vivem nesta sociedade com esta cultura partilham dessas ideias hegemónicas. Essa ideia de que os explorados não sabem o que é melhor para eles e votam contra os seus interesses por tacanhez é elitismo, é ter uma ética de esquerda mas uma epistemologia de direita, é uma ideia que nasce duma posição destacada, à parte e acima do povo.

Dito isto: o voto – ou não-voto – da maioria dos trabalhadores merece uma análise mais profunda. Basta olhar para os números para ver que onde é que a abstenção é maior:
– nos distritos que elegem menos deputados;
– nas zonas com as populações mais pobres;
– nas camadas mais jovens;
Parece evidente que o isolamento geográfico, a exclusão social, o desemprego e o trabalho precário promovem a alienação e consequentemente a abstenção. Ou, trocando a coisa por miúdos: quanto menos um trabalhador se sentir representado, menos importância dará à eleição dessa representação. Afinal de conta, se o voto pouco ou nada conta, para quê votar? Portanto, no que à abstenção diz respeito, há muito mais razões para que ela aconteça do que a mera indiferença ou ignorância de que são acusados aqueles que se abstêm.

Se a alienação desempenha um papel na abstenção, também o desempenha nos resultados dos votos expressos. O trabalho assalariado aliena, e um trabalhador alienado do produto do seu trabalho, de si mesmo e da sua comunidade está muito mais sujeito à ideologia dominante, aquela que consiste em apresentar os interesses da classe dominante como os interesses de toda a sociedade, o que no momento das eleições o conduz a votar nos partidos da classe dominante.

Mas não é apenas a alienação que faz assalariados votar nos partidos da classe dominante. Lénine identificou o problema quando afirmou que nas nações avançadas, a burguesia apropria-se, por via do imperialismo, da riqueza produzida por uma população em muitas vezes superior à do “seu próprio” país, permitindo a acumulação de super-lucros, uma parte dos quais é usada da subornar a camada superior do proletariado, tese em que foi acompanhado pelo Primeiro Congresso da Internacional Comunista, de 1919: “À custa da pilhagem dos povos coloniais o capital corrompe os seus escravos assalariados, criando uma comunhão de interesses entre explorados e exploradores contra essas colónias oprimidas, acorrentando a classe trabalhadora europeia e americana à “pátria” imperialista”.

Esta camada da classe trabalhadora, a que chamamos a aristocracia laboral, existe numa posição de privilégio relativo na economia mundial, ocupando postos de trabalho criados pela expansão imperialista e/ou cujos rendimentos superam a mais-valia per capita produzida pela classe trabalhadora, tornando-se assim recebedores indirectos da apropriação capitalista da mais valia-valia produzida por outros – a tal redistribuição de super-lucros. Nos momentos políticos em que é chamada a decidir, a aristocracia laboral vota de acordo com os seus interesses materiais, e embora sejam assalariados não se vêm como parte da classe trabalhadora para si, porque apesar de ocuparem a mesma posição em relação aos meios de produção que a restante classe (produtor/proprietário, explorado/explorador), tem interesses materiais antagónicos aos da restante classe trabalhadora, não partilha da consciência colectiva da classe trabalhadora e não se revê nas organizações políticas que veiculam os interesses da classe trabalhadora.

Cem anos depois da reflexão de Lénine e da Internacional, a criação duma série de postos de trabalho de chefias intermédias e cargos de gestão improdutivos, (“chefes de palha”, diria Lénine), o capital adensou o problema e fez crescer essa camada de trabalhadores cujos interesses materiais estão comprometidos com o desenvolvimento capitalista, logo, com interesses materiais e uma consciência de classe para si distinta da restante classe trabalhadora. E esses interesses manifestam-se não só no momento do voto, mas no apoio à expansão imperialista, seja ele o assalto aos recursos e força de trabalho do Sul Global, seja, como assistimos actualmente, ao comprometimento com o avanço bélico do Império.

Voltando à questão dos resultados eleitorais: Nos últimos anos, em Portugal, vimos surgir partidos novos, tanto à esquerda como à direita do panorama político, tendo alguns desses partidos conseguido eleger deputados, sem que tenha no entanto existido uma variação significativa da abstenção. Ou seja, estamos perante uma reorganização de campos políticos no seio da política institucional. Tendo em conta a posição semi-periférica de Portugal na economia global e a consequente natureza dependente e compradora da burguesia nacional, não lhe será possível que a aristocratização da classe trabalhadora seja dominante no seio da classe. A acumulação de lucros desta fraca burguesia nacional, não lhe sendo possível a exploração imperialista e neocolonial, terá de ser feita à conta do ataque aos direitos dos trabalhadores e do saque à sua produção. Ou seja: os trabalhadores portugueses estão condenados a pagar, com os seus baixos salários e precariedade, com o aumento do seu custo de vida, empobrecendo a trabalhar, a aristocratização do núcleo do império.

Torna-se assim evidente que mais importante do que a disputa deste ou daquele sector daqueles que já votam, é necessária a mobilização dos quase 4 milhões de pessoas que não votaram, na sua esmagadora maioria trabalhadores, e isso implica repensar estratégias que conduzam à sua tomada de consciência, de pertença a uma classe, e de reconhecimento duma organização política que seja o veículo dos seus interesses de classe, antagónicos aos interesses da classe dominante. O voto, não sendo o mais importante, surgirá como um dos resultados e nunca como ponto de partida ou objectivo deste processo.

2 Comments

  • José Mendes

    27 Março, 2022 às

    Para a transformação da sociedade as democracias facilitam a luta de classes pela, cada dia mais equitativa, distribuição da riqueza, até à igualdade material.
    Porém as democracias não fazem a luta de classes.
    Têm de ser as classes sociais a fazer a luta transformadora.
    A classe dominante, o patronato, faz a sua parte até onde as classes trabalhadoras deixam.
    Em Portugal vive-se um refluxo revolucionário há mais de quatro décadas.
    As classes trabalhadoras estão na defensiva e a classe dominante avança fazendo regredir as conquistas dos trabalhadores, designadamente, poder de compra, direitos, segurança, liberdade, estabilidade.
    Essa regressão das lutas laborais reprecute-se na opção de voto dos trabalhadores.
    A democracia enfraquece a pluralidade e tende para o “pensamento único”.
    No interior das empresas existe o poder interno exercido pela hierarquia do patrão que impõe o assédio laboral em todas as dimensões.
    Apesar desse absoluto poder interno é aí, nos locais de trabalho, que tem de ser criada a atmosfera de liberdade para exercer a luta de classes.
    As transformações materiais dependem dessas lutas e as opções de voto também.

  • Diclinda Baudouin

    26 Março, 2022 às

    Reflexão muito importante que nos põe a pensar como poderemos mudar a sociedade, para bem da própria.
    Gostei de ler.

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