Somos da terra

Nacional

Se é daqui que vos escrevo, se é debaixo deste sol de calor efémero que faz por aquecer a pedra do socalco que sustenta a vinha, se é daqui que vejo os rostos enrobustecidos à conta dos ventos nortenhos, de séculos de idade, que rasgam a paisagem duriense; rostos porém ternos, que miram ainda o rio serpenteando lá em baixo, como se olha um filho, endeusando-o, é então sobre este Douro também que me apresento ao Manifesto74.

Porque se é neste coletivo que se parte para o mundo todo, escavando por injustiças e desassossegos, tormentas e outras coisas que tal, que uns, poucos, escondem de todos, dizendo-nos que é assim, porque assim mesmo é o mundo e de outra forma não pode ser; este mesmo mundo que nos vendem, que tudo se vende menos essa raiva que nos faz cerrar os dentes perante o que não é certo de ser triste fado. Que como aqui visto, ou lido, tudo se pode transformar, vendo, mas sobretudo lendo, que a consciência é coisa desperta e a de classe é coisa que se entranha de forma fácil, vendo sim, mas principalmente lendo.

Assim, é justo que se daqui vos escrevo, deste Douro que é nosso, que dele vos fale, que antes de partir para o mundo em textos por escrever, dê a conhecer que também aqui houve resistência, que aqui também se cerram dentes da inquietude que nos assoma à superfície, que também aqui mora a esperança e o sonho da terra liberta de amos.

Foi o Douro, socalcos e tudo, alevantado por esta gente que arranca o sustento da terra com as suas próprias mãos, por mais ninguém, menos ainda pelos que com política lesa-pátria, tentaram antes e agora, como sempre e como dito, vender por tuta-e-meia, terras, gentes e trabalho e tudo. Que nem toda a paisagem foi parida pelo rio e os ventos, e, mesmo que assim tivesse sido, que importaria; que era afinal o Douro sem o seu povo, e, o seu povo sem o Douro.

Aqui, viu-se, buscando por um mundo justo, estas gentes erguendo-se, por contágio ou espontaneidade, ajuntando-se às revoltas da Maria da Fonte e dos bravos minhotos em 1846, mulheres e homens, antecipando igualdade ainda hoje por cumprir. Impostos de estrada e de enterro, recrutamentos militares rigorosos e a falta de pão, foram lenha para um fogo; que viram bem os minhotos e transmontanos que não havia na monarquia resposta direita à pobreza. E que chegando a república aburguesada, num país de fátimas combatendo rússias, dobrado nas intenções em tratado luso-britânico de 1914, se viu o Douro querendo ser despojado do seu bem mais d’oiro, o vinho e a vinha, que eram dali para a frente, todos e quaisquer vinhos de toda a terra deste país, a serem apresentados como vinho do Porto. Assim, em 1915, cinco mil almas foram as que se reuniram em defesa da denominação de origem do nosso vinho, mas não só, que outros motivos, como a miséria de sempre e as condições de trabalho de igual tempo, se juntaram à razão da turba revoltada. Neste motim de Lamego, subiram à cidade que lhe emprestou nome, vindos da ruralidade destas encostas aqui e ali plantadas, para encontrar uma saraivada de tiros em resposta, que fez tombar doze pelo chão.

E pela frente, ainda a longa noite fascista estava por chegar. É certo que por aqui, qual grilhão invisível, se guardaram em tradição bafientos jeitos e trejeitos salazarentos, senhoriais e clericais, mas seguro também é que não esquecemos os milhares que desafiaram a ditadura; ou desses os mais de duzentos nomes durienses, muitos comunistas mas não só, referenciados e detidos pela polícia do estado. E, a esses, presos políticos, torturados e deportados, por não esmorecerem no combate ao estado novo, por não cederem um milímetro dos quilómetros de esperança que alcatroaram vida fora, os guardamos em memória; também pelo seu contributo a alvorada não tardou e na madrugada libertadora houve também colunas militares deste Douro, marchando do lado certo.

E assim, feita a nossa vontade, que outra não há, de vos escrever sobre esta terra de gente digna, terra que é minha e que é nossa, que somos nós também da terra, desta terra de homens e mulheres que sonham como todos os povos do mundo pelo dia novo e o seu Homem; digo-vos agora, que é hora de partir para o mundo e os seus desassossegos, noutras linhas por vir, aqui no Manifesto74, que desta terra de onde somos, já está dito.

2 Comments

  • Clemente Alves

    10 Agosto, 2021 às

    Obrigado, Alexandre Hoffmann Castela, pela viagem ao donde nós viemos, ao xisto, ao granito e aos tantos homens e mulheres que por aqui esgravataram a terra e levantaram o centeio, a cevada, o milho do nosso pão e o vinho da nossa sede. Mas, sobretudo, por nos trazeres a lembrança das vidas que não se conformaram à miséria e à negação da sua e da alheia dignidade de ser gente, que lutaram, resistiram e deram a própria vida em nome de mais pão, mas também da Liberdade de serem Pessoas inteiras e não bestas de trabalho.

    Parabéns por integrares o colectivo de gente brilhante, que em cada dia faz Abril e que se chama Manifesto74.
    Escreve, meu amigo e camarada, sobre o mundo que sonhas e sobre as vidas que são a terra que somos. Por muitos te agradeço.

  • Clemente Alves

    10 Agosto, 2021 às

    Obrigado, Alexandre Hoffmann Castela, pela viagem ao donde nós viemos, ao xisto, ao granito e aos tantos homens e mulheres que por aqui esgravataram a terra e levantaram, o centeio, a cevada e o milho do nosso pão, e o vinho da nossa cede. Mas, sobretudo, por nos trazeres a lembrança das vidas que não se conformaram à miséria e à negação da sua e da aldeia dignidade de ser gente, e que lutaram, resistiram e até morreram em nome de mais pão, mas também em nome da liberdade de todos serem Pessoas inteiras e não bestas de trabalho.
    Parabéns por integrares este colectivo de gente brilhante, que em cada dia faz Abril e se chama Manifesto74.
    Escreve, meu amigo e camarada, sobre o mundo que sonhas e sobre as vidas que são a terra que somos.

Comments are closed.