Turquia, a nossa grande raiva*

Internacional

De todos lugares do mundo para fazer explodir uma bomba, uma manifestação pela paz é, por ventura, o mais sórdido. Talvez por isso seja ainda tão difícil compreender o inenarrável manifesto de desumanidade que, este sábado, ceifou pelo menos 130 vidas em Ancara, na Turquia. Depois, atingiram-nos, perplexos, aquelas imagens brutais da polícia a bater nas famílias que choravam os mortos. Ligeira e sem mais perguntas, a comunicação social dominante tratou de abreviar conclusões: «o maior atentado terrorista da Turquia moderna teve a assinatura do Estado Islâmico», repetiram, «assunto encerrado. Já cá não mora o Charlie». Se, por acaso, se tivessem perguntado «quem beneficiou com este ataque», teriam sido obrigados a lembrar-se que, afinal, não foi este, mas outros, como o Massacre de Maraş, em 1978, o atentado mais mortífero da Turquia moderna. Nessa ocasião, foram precisos quase 30 anos para se apurar a autoria do governo, com a colaboração da CIA, na matança de quase 200 militantes de esquerda. Seja como for, há coisas que nunca compreenderemos, que não podem ser humanamente compreendidas. Talvez por isso, Adorno tenha escrito que depois de Auschwitz a poesia se tornara «impossível». Desviar o olhar é, contudo, o privilégio dos espectadores e Adorno podia até dar-se ao luxo de não ser prático, mas a poesia tem justamente o mérito de desvendar a essência dos cenários incompreensíveis. Sirvamo-nos pois, dos versos do poeta e comunista Turco, Nâzım Hikmet. (Hás-de saber morrer pelos homens/E além disso por homens que se calhar nunca viste/E além disso sem que ninguém te obrigue a fazê-lo/E além disso sabendo que a coisa mais real e bela é/Viver)

Para entender o ataque de Ancara há que olhar para o massacre de Suruç que, em Julho passado, fez 33 mortos. Então, em véspera de eleições, o governo também culpou o Estado Islâmico, mas foi contra a oposição turca e curda que disparou, prendendo mais de 600 comunistas e sindicalistas e matando centenas de guerrilheiros do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Para a comunicação social, tratou-se simplesmente de «operações anti-terroristas». (Ó luz dos meus olhos, luz dos meus olhos/os noticiários estão outra vez a mentir/para que o saldo dos exploradores feche com cem por cento de lucro./Mas quem voltou do banquete do Anjo da Morte/voltou com a sentença…)

Não é fácil, por isso, saber se na raiz do massacre esteve o governo, o Estado Islâmico ou o chamado ‘Estado profundo’ porque os três se tornaram num só: o Estado Islâmico vende petróleo sírio ao Estado turco; o governo já não sobrevive sem o aparelho terrorista do ‘Estado profundo’ que, por sua vez, dirige o terrorismo islamita na provocação de um Estado de sítio permanente. (Ambos sabemos, meu amor/ eles ensinaram-nos/ a ficar com fome, com frio/o cansaço de morte/e a estar separados./Ainda não fomos obrigados a matar/e não aconteceu sermos mortos./Ambos sabemos, meu amor/nós podemos ensinar/a lutar pelo nosso povo/e a amar/a cada dia mais intensamente/um pouco melhor)

A volatilidade política da Turquia revela, como uma radiografia, as fracturas do esqueleto nacional. A vertigem repressiva de Erdogan é o reflexo duplo de um Estado capitalista incapaz de apaziguar os anseios do seu povo e de uma cada vez mais tensa relação de forças entre o imperialismo estado-unidense e as potências regionais. Trata-se de um quadro comum a toda a região que, no mosaico turco encontra características subjectivas únicas e significantes variações quantitativas: saído das eleições de Julho numa situação precária, Erdogan convocou novas eleições para dia um de Novembro compreendendo que as ambições do emergente capital turco exigem virar o Estado em direcção ao fascismo. (O Outono está prestes a acabar /A terra vai entrar num sono profundo logo, logo/E nós vamos passar mais um inverno:/a aquecer-nos com o fogo da nossa esperança sagrada/e com a nossa grande raiva…)

Se internamente o Estado turco ganha contornos fascizantes, externamente é ainda mais violento na procura de uma redefinição geoestratégica de corte otomano. Tendo-se assumido como um eixo estratégico na desestabilização da Síria, os recentes retrocessos do imperialismo naquele país acarretam sérias consequências internas para a Turquia. Como recorda, num comunicado de dez de Outubro, o Partido Comunista, Turquia, «enquanto a polícia turca dá asilo aos assassinos em fuga do Estado Islâmico, o gang no poder (seguidores da sharia do AKP) ataca, receoso de uma derrota». (Eles são inimigos da esperança, meu amor/são inimigos da água corrente/da árvore que frutifica/da vida que se desenvolve./Porque a morte carimbou-lhes a testa/ dentes que apodrecem, carne que se deteriora/serão destruídos e nunca mais voltarão/E sem dúvida, meu amor, sem dúvida/a liberdade caminhará livremente neste país lindo/com a sua melhor roupa:/o uniforme de operário…)

*Versão parcial de um artigo publicado no jornal Avante! N.º 2185 de 15 de Outubro de 2015