Aceitemos o desafio de T.H. Huxley: “o tabuleiro de xadrez é o mundo, as peças são os fenómenos do universo, as regras do jogo são aquilo a que chamamos leis da natureza, o jogador do outro lado está escondido”. O florão de Huxley encerra duas verdades inexoráveis do xadrez que, fora dele, são facilmente descuráveis: não só se tornou por demais óbvio que o planeta e os seus recursos são tão finitos quanto os quadrados do tabuleiro como todas as partidas, tal como as nossas vidas, se jogadas, chegam invariavelmente ao fim. O xadrez, mesmo que por correspondência, é uma urgência implacável que nunca anda para trás. Perante a iminência do mate (morte em persa), que é a contradição de o rei precisar de mover-se mas não o poder fazer, o xadrezista sabe que tem de aproveitar cada jogada, cada tempo, cada oportunidade como tu, se soubesses que ias bater a bota, a caçoleta e o cachimbo; que ias para a terra da verdade, para o céu ou para o beleléu; para o jardim das tabuletas, para quinta dos pés juntos, para os anjinhos ou só para as malvas; isto é, se te lembrassem que ias mesmo virar o presunto e fazer a derradeira viagem sem chapéu — porra — aí gritarias: “devolvam-me a minha vida!” e farias greve até ao teu último sopro te deixar os pulmões sob uma grande faixa onde se leria “Não venderemos as poucas horas que nos sobram a cinco euros à hora!” e antes gritarias palavras de ordem como “devolvam-me toda vida roubada!” ou “exigimos as todas vidas que podiam ter sido” e jogarias este grande jogo de xadrez.
O jogador escondido do outro lado: xadrez e dialéctica
