O jogador escondido do outro lado: xadrez e dialéctica

Aceitemos o desafio de T.H. Huxley: “o tabuleiro de xadrez é o mundo, as peças são os fenómenos do universo, as regras do jogo são aquilo a que chamamos leis da natureza, o jogador do outro lado está escondido”. O florão de Huxley encerra duas verdades inexoráveis do xadrez que, fora dele, são facilmente descuráveis: não só se tornou por demais óbvio que o planeta e os seus recursos são tão finitos quanto os quadrados do tabuleiro como todas as partidas, tal como as nossas vidas, se jogadas, chegam invariavelmente ao fim. O xadrez, mesmo que por correspondência, é uma urgência implacável que nunca anda para trás. Perante a iminência do mate (morte em persa), que é a contradição de o rei precisar de mover-se mas não o poder fazer, o xadrezista sabe que tem de aproveitar cada jogada, cada tempo, cada oportunidade como tu, se soubesses que ias bater a bota, a caçoleta e o cachimbo; que ias para a terra da verdade, para o céu ou para o beleléu; para o jardim das tabuletas, para quinta dos pés juntos, para os anjinhos ou só para as malvas; isto é, se te lembrassem que ias mesmo virar o presunto e fazer a derradeira viagem sem chapéu — porra —  aí gritarias: “devolvam-me a minha vida!” e farias greve até ao teu último sopro te deixar os pulmões sob uma grande faixa onde se leria “Não venderemos as poucas horas que nos sobram a cinco euros à hora!” e antes gritarias palavras de ordem como “devolvam-me toda vida roubada!” ou “exigimos as todas vidas que podiam ter sido” e jogarias este grande jogo de xadrez.

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Para eles: mais produtividade. Para nós: mais exploração.

Como seria de esperar, o novo assalto aos direitos dos trabalhadores, pela mão do Governo PSD/CDS, que vem anunciado como “Trabalho XXI”, é um tratado de retorno ao século XIX no que toca a direitos laborais.

O embrulho é sempre o mesmo: modernidade, competitividade, produtividade. 

Pouco antes de o Governo apresentar o novo pacote do assalto, lia-se no Diário de Notícias: “A dois anos de lançar o novo modelo elétrico da VW, made in Portugal, o diretor-geral da Volkswagen Autoeuropa, Thomas Hegel Gunther, considera que a receita do país e da Europa para recuperar a competitividade perdida para o Oriente “tem de ser o aumento da produtividade”.” Vejam a habilidade com que o director-geral da Autoeuropa culpa os trabalhadores pela perda de competitividade, sendo que concretiza logo a seguir: “Em causa podem estar fatores de produção como o custo do trabalho ou o da energia.”.

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O Tempo da Indecência

Sob a máscara do conservadorismo democrático a extrema-direita política em Portugal está implementada bem para lá das fronteiras dos partidos ou organizações populistas, esticando a sua influência ideológica para as estruturas neoliberais e social-democratas. Neste cenário, um tanto ou quanto aceleracionista, o fascismo é ressurgido e institucionalizado, os seus caciques estão em roda solta e o patronato esfrega as mãos, às aranhas só o pobre, sem saber quem o maltrata.

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Ainda estamos a tempo

Foto: Nascer do Sol

O tempo político e social que vivemos não está para tibiezas, nem para meias-palavras. Não está para subtilezas partidárias, achismos inócuos, gestos anódinos. Não está para ajustes de contas, calculismos ou percepções de superfície. O quadro que está diante dos nossos olhos e o espaço onde decorrem as nossas vidas exige hoje, mais do que nunca, que não desperdicemos uma só hipótese que seja de contribuir para a saúde da nossa democracia e para inverter a situação de cedência colectiva ao pólo anti-democrático. Basta de critérios pequenos para se enfrentarem problemas grandes.

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If I must die

Mohammed Abed/AFP

“If I must die” é um poema de 2011, originalmente escrito em inglês, pelo escritor, poeta, professor e activista palestiniano Refaat Alareer, assassinado por Israel em 2023, num dos incontáveis bombardeamentos que têm vindo a terraplanar Gaza. O poema, que agora faz parte de uma colectânea póstuma – If I Must Die: Poetry and Prose, recuperou voz e vigor pelas mais óbvias razões, e reveste-se de uma intemporalidade trágica, porque perante o desaparecimento da humanidade canta a esperança, porque é, contra todas as evidências em contrário, a dignidade que resta dessa humanidade ausente.

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Sebastião, Salgado em Terra insossa

Se o sal preserva a comida e lhe dá sabor, assim devem ser os seguidores de Cristo, na Terra, segundo o Evangelho de São Mateus (5:13). Teologias à parte, hoje o planeta adormece bem mais insosso. Por todos os homens que nunca foram meninos, mas, igualmente, por todos os meninos que nunca chegaram a ser homens, Sebastião Salgado não só preservou a memória como imortalizou as lutas de gente sem nome nem morada, concedendo-lhe um lugar nas revistas e nos jornais, nos museus e nos livros de História. Não é, portanto, um trocadilho gratuito, este que convoca Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado, feitores do belíssimo documentário “O Sal da Terra” (2014), que acompanha o percurso deste homem admirável que recordamos e culmina na elaboração de “Génesis”, uma carta de amor a todas as formas de vida após testemunhar tanta morte; uma das obras-primas do fotógrafo brasileiro que integrou um grupo armado de Marighella, durante a ditadura militar, e plantou, com a esposa Lélia, três milhões de árvores em área devastada. 

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Princípios de Resistência 

Em tempos de escuridão, há sempre alguém que resiste e há sempre alguém que diz não. O fascismo foi derrotado há 51 anos, depois de 48 anos de luta revolucionária e ação militante de comunistas que deram a sua vida — muitos, de forma literal — pela libertação de Portugal e dos povos irmãos de África. Essa luta, tantas vezes invisível, foi feita de coragem, mas também de persistência silenciosa. Um trabalho paciente, de base, que foi mobilizando as massas, criando lentamente as condições objetivas para promover mudanças profundas. 

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Nanni Moretti e o horizonte comunista como antídoto da direita e do “voto útil”

A 20 minutos do final de “O Sol do Futuro” (filme de 2023, de Nanni Moretti), Giovanni, um idealista e impetuoso realizador a braços com uma tripartida crise artística, ideológica e conjugal, interpretado por Moretti num estreitamento da linha que delimita ficção e realidade, encontra-se sentado à mesa com a produtora e recente ex-companheira. Ponderações sobre o desgaste da sua relação e a perda de financiamento para o filme que se encontra a realizar imiscuem-se e atropelam-se. Interrompe-o o extasiado veredito do grupo de investidores sul-coreanos sobre o guião, a última esperança que tem, o filme, de ver a luz do dia. Agrada-lhes particularmente o suicídio na cena final: “tão dramático e sem esperança. É um filme sobre a morte da arte e do comunismo.”

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