Autor: Milene Vale

Yaka, voz da descolonização

Imagem do documentário "Independência", de Fradique (Mário Bastos), 2016

Erro de Português

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

Oswald de Andrade, Pau-Brasil, 1925

Um poema escrito por um brasileiro, na década de 20, para dar início a um artigo sobre um romance angolano, escrito nos anos 80? Passo a explicar — Oswald de Andrade, aludindo a um registo de Pero Vaz de Caminha (23 de Abril de 1500), refere-se à chegada dos portugueses ao Brasil, durante uma tempestade, entre ventos de sueste e copiosos chuvaceiros. Ao “vestir o índio”, os portugueses estariam, literalmente, a agasalhá-lo, e, figurativamente, a impor a sua cultura, numa tentativa de civilizar os povos nativos. Depois, apresenta um cenário avesso, alternativo, que desconstrói a pretensa grandeza épica dos Descobrimentos através da inversão de papéis — “Fosse uma manhã de sol”, um dia bom, e o índio não seria submetido à dominação colonial; teria “despido o português” ou, melhor ainda, tê-lo-ia despojado da sua ambição usurpadora. Yaka, de Pepetela, começa pela tempestade, a violência colonial, e termina anunciando a alvorada soalheira que firmou a independência de Angola. Tendo como fio condutor a longa vida de Alexandre Semedo, personagem principal e colono de origem portuguesa nascido em Benguela, o autor faz um retrato brilhante e historicamente rigorosíssimo das várias fases da luta pela independência, em Angola, e a progressiva descolonização do imaginário de Alexandre. O patriarca da família Semedo é, de facto, “despido” de todos os seus preconceitos, aspirando, no final da vida, não à extensão do seu privilégio, mas à libertação do território angolano.  Ler mais

Maria, Mulher de Abril, Bruxa da Palavra

“Isto é para aprenderes a não escrever como escreves” — disseram-lhe dois homens enquanto a espancavam, numa rua estreita, no Arco do Cego. Foi, em tempos sombrios, o preço a pagar pela sua ousadia, pela recusa de um “lirismo comedido”, resignado, conformista. Hoje, especialmente hoje, podemos olhar o triste episódio e pensar que Maria Teresa Horta, co-autora das emblemáticas “Novas Cartas Portuguesas”, estaria a fazer alguma coisa bem. Essa coisa que, quando ainda em construção, era já uma ameaça ao fascismo beato que oprimiu o nosso povo durante 48 anos e à sua natureza castradora da expressão poética. O legado que nos deixa é a materialização da sua resistência impudica contra a repressão fascista, em primeiro lugar, e contra a dominação patriarcal, essa inaugural camada tão sua com que viria a engrandecer a poesia portuguesa.

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Feminismo-L’Oréal em tempos de guerra

Um cidadão inglês de nome Henry Stewart e, de resto, anónimo, escreveu uma brevíssima carta ao The Guardian, em 2016. Nessa carta, avança que nunca uma mulher de burqa, hijab ou burkini lhe fizera mal, pois são os homens de fato, que condenam a economia ao colapso, arrastam milhões de pessoas para a miséria e provocam guerras desastrosas e ilegais, os responsáveis pelos males do mundo. Stewart arremata, então, sugerindo que, se queremos começar a policiar o que os outros vestem, no lugar das burqas, devíamos antes banir os fatos. É isto que o feminismo liberal, esvaziado de coerência e luta de classes, não atinge. Às feministas liberais, a burqa e o hijab causam tanto, mas tanto, transtorno que não lhes sobra tempo para se incomodarem com os homens de fato, esses que condenam a economia ao colapso, arrastam milhões de pessoas para a miséria e provocam guerras desastrosas e ilegais. O feminismo liberal refugia-se, repetidamente, no regaço do opressor e despreza as mulheres que todos os dias caem como tordos, assassinadas, amputadas, violadas e aprisionadas às ordens de homens de fato.

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Anatomia de um processo revolucionário: Greve, de Sergei Eisenstein

Em 1918, Sergei Eisenstein abandonou a escola para se alistar no Exército Vermelho. Mais tarde, é no cinema, entusiasmante arte por desbravar, que continua a combater aguerridamente pela construção do socialismo, após uma breve experiência no teatro agit-atracção, ramo experimental e eminentemente politizado. Greve (1925), a sua primeira longa-metragem, é bem mais do que um filme, tendo-se tornado, desde a sua estreia, num marco do cinema soviético que influenciaria os seus contemporâneos, como Dovzhenko ou Ermler, pois o conjunto de inovações técnicas que apresenta, por si só, encabeçavam, na sequência da Revolução de Outubro de 1917, uma nova revolução no que concerne às artes. Parte inaugural de uma série de filmes que reconstroem a luta atribulada dos trabalhadores, na Rússia pré-URSS, e cujo fio condutor é a urgência da ditadura do proletariado, Greve é uma colaboração entre o centro cultural Proletcult e os estúdios Goskino, que se encarregaram da sua distribuição. Embora não tenham chegado, em massa, ao público internacional, até às décadas de 50 e 60, Greve e as demais obras do cineasta despoletaram reformas várias na forma de fazer cinema, particularmente, na Europa. A sua descoberta simboliza um momento de viragem para o cinema de todo o mundo, que se sentou boquiaberto e tomando notas, absorvendo os seus contributos para o desenvolvimento da sétima arte. Hoje, nem Eisenstein está datado, nem a Greve é temática obsoleta.

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A torneira, o interruptor e o azul do mar

Fotografia de Mohammed Zaanoun, fotojornalista palestiniano.

Já lá estava gente, já lá viviam pessoas. É isto que os engravatados do telejornal nunca dizem, tentando convencer o espectador de que o início do massacre em curso data do passado 7 de Outubro. Já lá existiam famílias, sonhos e vontades. É o que nunca ouvimos da boca dos finos fantoches do imperialismo, nos estúdios de Queluz de Baixo ou nas costas quentes de Tel Aviv. Já lá conviviam templos, culturas e olivais. Já lá nascia vida. Já lá se moía, há muito, o grão de bico, com um dente de alho, tahini e sumo de limão. Já lá se havia edificado um povo inteiro que, hoje, resiste à barbárie sionista. Os sonhos foram ceifados, os olivais, abatidos, e a Terra, que há muito não é santa, ocupada ilegalmente por essa vesana e assassina ideia de Israel, Estado genocida erguido sobre enxurradas de sangue palestiniano. Mas, à pretensa agência imobiliária divina, nada disto interessa: um livro místico com 2500 anos assegura, num diálogo entre Deus e Abraão, que a terra prometida não é para qualquer um.

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As mãos de Víctor Jara

11 de Setembro de 1973. Avançava, Santiago adentro, o golpe militar fascista financiado pela CIA – e antecedido por um bloqueio económico – que levaria Augusto Pinochet ao poder. Ao longo dos 17 anos que se seguiram, muitos foram perseguidos, mortos, torturados, presos ou exilados, por se oporem à ditadura militar, fruto do famigerado Plano Condor, que se propôs, através da repressão, a desmantelar quaisquer tentativas de construção do socialismo, na América Central e do Sul, introduzindo ainda políticas de mercado livre cujas nefastas consequências se vêem ao longe.

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Feminismo Liberal, Feminismo-L’Oréal

Façamos a regra de três simples – se, como disse Chico Mendes, “ecologia sem luta de classes é jardinagem”, o que será o feminismo sem ela? Um equilíbrio um tanto mafioso entre a manutenção do sistema capitalista e não fazer a depilação; acabar com a desigualdade, mas só um bocadinho; qualquer coisa entre um hobby e um estado de espírito, ou, mais recentemente, uma parceria da marca L’Oréal Paris com a ONG Right to Be. Pois não haveria certamente melhor parceira do que a maior empresa de cosméticos do mundo, no combate ao assédio sofrido pelas mulheres em locais públicos. Portanto, a ver se nos entendemos: nadando em lucros milionários, a L’Oréal Paris amanheceu generosa e decidiu começar uma acção de formação gratuita (vejam só!) para acabar de vez com o assédio. Sob a condição de poder continuar a explorar as suas trabalhadoras, naturalmente. E sem o relacionar com qualquer outro problema social, como é óbvio, que isso já era demais. É disto que o feminismo liberal vive, enquanto as mulheres reais, as que trabalham, continuam a sofrer na pele a brutalidade do capitalismo selvagem, que este ajuda a perpetuar. 

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