Autor: Milene Vale

A cultura do desinvestimento

Desdobram-se em discursos pomposos, multiplicam-se em declarações de amor à cultura e às artes, gostam tanto de ouvir orquestras, daquelas cujo maestro é estrangeiro, e de ver um bailado sem pensar em nada. Como adoram sentar-se confortavelmente na penumbra da maior sala de um teatro nacional perante uma peça de Molière, de Pirandello, de Strindberg. Como também não passam sem comentar, de flute em riste, com os outros burgueses, que apreciaram muito este e aquele actor; que o cenário era – Oh! – extraordinário; como complementava o texto o violoncelo de fundo; como se arrepiaram – clássico – quando o veludo vermelho da cortina se ergueu. Pouco importa, então, se os actores são precários e se afogam em recibos verdes, se o violoncelista também é empregado de escritório, se os técnicos de luz e som, mais os figurinistas e os funcionários da bilheteira contam trocos no final do mês para pagar uma renda asfixiante, naturalmente já nos subúrbios. Assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal. É mesmo assim e assim será, desta vez com uma maioria absoluta que nunca ouviu falar em investimento ou em democratização da cultura, ou para a qual o interesse pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores é uma anedota, um capricho, uma utopia de esquerda.

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Em Cuba não se aluga a barriga de ninguém

Enquanto em Itália se votava para eleger o primeiro governo de extrema-direita desde Mussolini, na pequena ilha no meio do Atlântico que todos os dias nos dá 10 a 0, votava-se, 24 rascunhos depois, um referendo de amor e democracia, ou o novo Código das Famílias que, por sinal, é o mais progressista que o mundo já viu, e cuja redacção contou com o contributo de cerca de 70% do eleitorado. Entretanto, continua claro qual destes países é, para o ocidente, uma democracia, e qual deles é uma ditadura.

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O sonho americano

Inegavelmente, aprendemos muito com os Estados Unidos. Desta vez, aprendemos que, se adormecermos no século XXI, podemos muito bem acordar no século XVIII, lá onde se apregoa o direito à posse de armas de fogo e se desprezam os direitos das mulheres. A revogação da Roe vs Wade que, desde 1973, concedeu a todas as mulheres o direito de interromper voluntariamente a gravidez, nos EUA, representa não só um retrocesso do tamanho de vários séculos, mas o anúncio de uma vaga assombrosa de atropelos aos direitos humanos. São eles próprios, os juízes do Supremo Tribunal, que o dizem: isto é só o começo.

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O direito à cultura e o Estado-Ninja

A Constituição da República Portuguesa diz-nos, no primeiro ponto do seu Artigo 73.º, que “todos têm direito à educação e à cultura”. Vai ainda mais longe, no terceiro ponto, quando afirma que “o Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais”. Mas que linda Constituição a nossa. Imaginem que era cumprida.

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Paula Rego vive!

Foi aos 87 anos que partiu Paula Rego, um dos maiores nomes da pintura portuguesa e dos mais irreverentes a nível internacional, na actualidade. A tristeza é inevitável, no entanto, também o é a gratidão sentida ao recordar os frutos desses frondosos 87 anos. Não deixou nada por fazer. Paula Rego assina um vastíssimo legado constituído por pinturas, desenhos e gravuras sem paralelo. Além do seu legado artístico, deixa-nos um precioso legado de luta.

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Alcindo: um documentário obrigatório

Há mar e mar, há ir e voltar, há poemas, epopeias, slogans e provérbios. Há de tudo e mais alguma coisa, com rimas ou sem elas, que faça por apelar à memória e ao perpetuar da ligação dos portugueses ao mar. É também pelo mar que Miguel Dores começa, porque foi ao mar que se fez a família de Alcindo Monteiro, com o sonho de uma vida melhor às costas, para chegar a Portugal. A sua chegada é antecedida por séculos de colonialismo. A sua estadia, não pode dizer-se que foi livre dele. Com isto em mente, o filme Alcindo vem dizer-nos que a Guerra Colonial não só não acabou completamente com a Revolução de Abril, em 1974, como tende a ser continuada no discurso, nas biqueiras de aço, nas soqueiras e nos avanços odiosos dos etno-nacionalistas. Também não esquece nem é conivente com a violência policial.

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Constantinopla, 1453

Era Domingo de Pentecostes e os soldados de Maomé II derrotavam os de Constantino XI Paleólogo, assumindo o controlo de Constantinopla – à data capital do Império Bizantino – após um cerco militar de 53 dias. Num dia 29 de Maio como este, servia-se frio o derradeiro ponto final à história milenar do Império Romano. Enquanto os otomanos avançavam sem dó nem piedade, os clérigos, fechados que estavam no conforto do concílio, concentravam-se, como habitual, em solenes e intrincados debates teológicos. Consta que naquele momento – enquanto Constantinopla caía – discutiam se os anjos teriam ou não sexo, ou o “sexo dos anjos”. Passados 569 anos, há quem continue a seguir o seu triste exemplo, promovendo debates vãos ao invés do foco nos que são urgentes. 

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Os óculos escuros de Pier Paolo Pasolini

“Homossexual – escritor – comunista – realizador – jornalista político – poeta – homem do teatro e não sei quantas coisas mais” – assim terá sido recordado, por Alberto Moravia, um dos homens que tanto marcou o panorama cultural no século XX como continua a marcá-lo, com a mesma eloquência e o mesmo arrojo, nos dias de hoje. Pasolini certificou-se de que seria difícil ou até mesmo impossível esquecê-lo, porém, num ano como este, em que se celebra o seu centenário e brotam retrospectivas como cogumelos, surge o imperativo de se fazer lembrar tudo aquilo que vai para além da estética ou da especulação, impedindo a tentativa de despolitização de uma obra monumental e inerentemente política.

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