Autor: Milene Vale

A pomba vermelha da vontade

I

No início do filme Palombella Rossa, de Nanni Moretti, a personagem principal (Michele Apicella), interpretada pelo mesmo, sofre um acidente de carro que lhe provoca uma curiosa amnésia. Michele Apicella é, além de exímio jogador de pólo aquático, um dirigente comunista. Ora, a nossa personagem principal, após o acidente, logo se lembra de que é comunista – é a única certeza que tem – e repete-o, para ninguém se esquecer, mas não se lembra porquê; não se lembra porque é que outros o são; não se lembra do que é ser-se comunista. Como tal, anda às voltas, tentando convencer-se a si e aos outros, através de chavões e frases feitas, que nunca são suficientes e tampouco eficazes; inconscientemente à espera que algo surja para restabelecer as suas certezas, que algo o relembre da primordial razão, que algo o traga à tona, no pólo aquático e na vida; que algo o empurre para fora dos chavões e o devolva à acção, com a inabalável convicção e a força de vontade que deixara algures esquecidas, entre os cacos dos faróis do carro e a repetição dos dias burocráticos. Mas isto não é uma crítica de cinema.

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Afinal o que importa não é a literatura

Das armas e os barões assinalados da epopeia ao povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas da anti-epopeia, talvez sejamos tudo isso, mas será que agora importa? Talvez sejamos barões e burros de carga; tudo daí para cima e para baixo, mas será que ainda nos servem de alimento real e concreto as epopeias e as anti-epopeias? Será que vamos continuar a deixar que nos definam, do alto, enquanto povo, a deixar que a literatura dos outros diga ao mundo e à história dos vencedores o que fizemos e não fizemos, se vamos além da Taprobana ou que não vamos a lado nenhum? Afinal o que importa? Será a literatura que vemos ao longe e nos dá força ou nos deita abaixo; que ora nos cega com glórias do passado, ora nos agarra pelo colarinho e nos acusa de catalepsia ambulante? Não é a literatura, senhores. Nem a crítica de arte nem a câmara escura. Não é, pelo menos, a literatura lá de longe.

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