É algo que ferve por dentro até que se nos escapa pelas cordas vocais e somos obrigados a expressar a raiva em que nos mergulham. Eu sei de algo que escapou a todos os telepontos que foram lidos nos telejornais. Enquanto dezenas de ricos mergulhavam água gelada na cabeça, ele estava ali a travar a sua cruzada contra a vida. De pé, na Ponte Luís I, esperou que o peso de tudo o derrubasse para o vazio que o separava do rio.
No filme de Mathieu Kassovitz, quando o cocktail molotov abre caminho entre a tela negra e explode sobre o nosso planeta é a gasolina que ilumina a queda para revelar-nos que nada importa mais do que o impacto. Longe da violência que nos encharca a vida todos os dias, parte da humanidade entretém-se com a caridade mediatizada dos que nada fazem para exterminar a fábrica de horrores que produz todos os dias novos pobres a quem deixar esmolas.
Para lá da escassa frescura racional de quem rejubila com este circo, a indiferença choca com a brutalidade dos tempos que vivemos. Se é verdade que o Verão tem estado aquém das expectativas, não é menos verdade que as praias israelitas têm estado cheias. Ali ao lado, em Gaza, para além das lágrimas dos que sobreviveram, já não resta água. A temperatura está insuportável na Palestina, no Donbass, no Curdistão, na Síria e em Ferguson.
Aqui, aparentemente a água está gelada, e o Atlântico, ainda assim, não refresca a ânsia de afogar-nos em estupidez. Enchem-se as notícias de ecos vazios da ficção que nos tentam impor. Supostas rixas que derivam em verdadeiros arrastões cerebrais dos quais não sobra sequer algum vestígio de lucidez. Não é racismo porque em Portugal isso não existe. Mas quando as agências funerárias vão à morgue levantar os corpos dos filhos dos bairros só há negros. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove. Não importa quantos foram porque em Portugal não há racismo.
E aqui andamos, à espera que os banqueiros que nos fodem a vida e mandam nos jornais dirijam o barómetro dos nossos pensamentos. Caiu um avião abatido? A culpa é dos russos. Não é? Então não se fala mais nisso. Morrem civis decapitados na Síria às mãos do ISIS? Não importa porque o governo não é dos nossos. O ISIS faz o mesmo no Iraque? Que desastre, que assassinos, que barbárie. Mataram um negro em Ferguson? Algo de mal estaria a fazer.
Pois é, o desemprego baixou e há-de baixar mais segundo previsões de Passos Coelho. Como baixaram milhares de aviões com meio país às costas rumo ao exílio à procura de um futuro. Como baixou aquele homem que decidiu atirar-se da Ponte Luís I. Brecht dizia que era quase um delito falar de coisas inocentes porque implicava silenciar horrores. O dramaturgo e poeta alemão pedia às gerações futuras que nos lembrassem com indulgência «porque os que quisemos preparar o terreno para a bondade não pudemos ser bons». E é por isso que não pode haver paz sem justiça.