Visitar o jardim no fogo de Odessa

Internacional / Nacional

Uma delegação da Assembleia da República chegou ontem a Kiev para uma visita à capital ucraniana. Entre os participantes está Isabel Pires, deputada do Bloco de Esquerda, que referiu à RTP3 qualquer coisa como “o parlamento [português] tem trabalhado envidado os seus esforços numa solução para a paz”, sem, no entanto, referir quais. Percebe-se. Em 2016, o Bloco de Esquerda recusou integrar uma delegação que acompanharia o Presidente da República a Cuba. O motivo apontado foi a coincidência de datas das jornadas parlamentares, que que teriam lugar na mesma altura. O BE tinha então 19 deputados. Hoje, na Ucrânia, tem a companhia de PS, PSD e IL. Estes últimos, hoje, não devem ser os radicais protofascistas neoliberais que eram no dia 1 de Maio.

Nem-nem

As posições confortáveis do BE em matéria de política e relações internacionais são bem conhecidas, e não há uma única que possa comprometer um partido que vive do mediatismo, com uma militância frágil, em que já começam a saltar as estrelas para uns e outros municípios, tendo em vista as próximas autárquicas. O BE do “nem Maduro, nem Guaidó”, “nem NATO, nem Milosevic” e uma série de outros nem-nem que possam chocar a classe dominante mantém-se fiel ao sossego, não vá agitar as águas e haver algum tipo de escrutínio. No caso de Cuba, presumo que tenha sido o “nem Canél, nem embargo”, que levou o esquerdapontonet a publicar um artigo nojento – que não vou partilhar -, sobre a revolução cubana, no seu aniversário, a 1 de janeiro de 2022, que teve aqui a resposta merecida.

Os Direitos Humanos

No entanto, Cuba não foi caso único na seletiva política de representação do BE em visitas a outros Estados. Em 2019, o partido foi bem explícito: “O Bloco não integrará a visita de Estado à China, em coerência com a posição que tem assumido sobre as restrições à liberdade e violação dos direitos humanos”. Ficamos assim a saber que, para o Bloco, ainda antes da invasão russa, a Ucrânia era um país respeitador dos Direitos Humanos, dado que mantém a mesma estrutura de poder político, excetuando, claro está, os partidos políticos entretanto ilegalizados, os castigos corporais em praça púiblica, a perseguição à comunidade cigana e LGBTI ou a todos aqueles que discordam do regime; daqueles que, por não terem fugido dos horrores da guerra, são vistos como colaboracionistas dos russos em territórios entretanto reconquistados pela Ucrânia.

O tribunal especial

Seria interessante perceber o que pensa a deputada Isabel Pires sobre a ilegalização de partidos políticos na Ucrânia, nomeadamente o Partido Comunista da Ucrânia, ilegalizado muito antes da invasão russa, das declarações de Hollande e Merkel sobre os tratados de Minsk e da interferência da NATO no conflito. Sobre este aspeto, vale a pena lembrar o pessoal do BE que tem no seu merchandising um caderninho onde pode ler-se “Portugal fora da NATO – nem um cêntimo para as vossas guerras“. Simultaneamente, é conhecida a posição do BE relativamente à criação de um tribunal especial para julgar os crimes de guerra. De acordo com um Projeto de Resolução do PSD apresentado no parlamento (Projeto de Resolução n.º 407/XV/1.ª), que o BE aprovou, é a favor de que seja criado um tribunal deste tipo, mesmo toda a gente sabendo, e a deputada Isabel Pires em particular, que sobram os dedos de uma mão para contar os casos em que tribunais deste género não serviram apenas a justiça dos vencedores. O caso da ex-Jugoslávia, é um bom exemplo do fiasco que são estes procedimentos. Não há, nesta matéria, uma vírgula que se acrescente ao que são as posições dos partidos mais reacionários, seja em Portugal ou na Europa.

Nove anos do Massacre de Odessa

Por coincidência, a deputada do BE chegou a Kiev exatamente nove anos após o massacre na Casa dos Sindicatos de Odessa. Muitos de nós já escreveram aqui sobre Odessa, desde logo em 2014, quando a Ucrânia ainda não era assunto para alguns. A deputada do BE, que, desta vez, felizmente, não teve de declinar um convite do Presidente da AR fruto de questões de agenda partidária, mesmo tendo menos 14 deputados do que tinha em 2016, aquando da visita a Cuba, pôde ir em viagem à flor mais vibrante do jardim de Borrell, e estou certo de que não deixará esta data passar em claro, relembrando as vítimas que morreram queimadas e prestando respeito à suas famílias, que não viram nem verão os assassinos julgados. O calor revolucionário do BE, que fervilhou nas comemorações do 1 de Maio, que se recusam a comemorar ao lado dos trabalhadores mas sim atrás da faixa do seu partido, devidamente identificada, não permitirá abandonar Kiev sem deixar bem claro: Portugal fora da NATO, NATO dentro da Ucrânia!