Era Domingo de Pentecostes e os soldados de Maomé II derrotavam os de Constantino XI Paleólogo, assumindo o controlo de Constantinopla – à data capital do Império Bizantino – após um cerco militar de 53 dias. Num dia 29 de Maio como este, servia-se frio o derradeiro ponto final à história milenar do Império Romano. Enquanto os otomanos avançavam sem dó nem piedade, os clérigos, fechados que estavam no conforto do concílio, concentravam-se, como habitual, em solenes e intrincados debates teológicos. Consta que naquele momento – enquanto Constantinopla caía – discutiam se os anjos teriam ou não sexo, ou o “sexo dos anjos”. Passados 569 anos, há quem continue a seguir o seu triste exemplo, promovendo debates vãos ao invés do foco nos que são urgentes.
Autor: Milene Vale
Os óculos escuros de Pier Paolo Pasolini
“Homossexual – escritor – comunista – realizador – jornalista político – poeta – homem do teatro e não sei quantas coisas mais” – assim terá sido recordado, por Alberto Moravia, um dos homens que tanto marcou o panorama cultural no século XX como continua a marcá-lo, com a mesma eloquência e o mesmo arrojo, nos dias de hoje. Pasolini certificou-se de que seria difícil ou até mesmo impossível esquecê-lo, porém, num ano como este, em que se celebra o seu centenário e brotam retrospectivas como cogumelos, surge o imperativo de se fazer lembrar tudo aquilo que vai para além da estética ou da especulação, impedindo a tentativa de despolitização de uma obra monumental e inerentemente política.
A pomba vermelha da vontade
I
No início do filme Palombella Rossa, de Nanni Moretti, a personagem principal (Michele Apicella), interpretada pelo mesmo, sofre um acidente de carro que lhe provoca uma curiosa amnésia. Michele Apicella é, além de exímio jogador de pólo aquático, um dirigente comunista. Ora, a nossa personagem principal, após o acidente, logo se lembra de que é comunista – é a única certeza que tem – e repete-o, para ninguém se esquecer, mas não se lembra porquê; não se lembra porque é que outros o são; não se lembra do que é ser-se comunista. Como tal, anda às voltas, tentando convencer-se a si e aos outros, através de chavões e frases feitas, que nunca são suficientes e tampouco eficazes; inconscientemente à espera que algo surja para restabelecer as suas certezas, que algo o relembre da primordial razão, que algo o traga à tona, no pólo aquático e na vida; que algo o empurre para fora dos chavões e o devolva à acção, com a inabalável convicção e a força de vontade que deixara algures esquecidas, entre os cacos dos faróis do carro e a repetição dos dias burocráticos. Mas isto não é uma crítica de cinema.
Afinal o que importa não é a literatura
Das armas e os barões assinalados da epopeia ao povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas da anti-epopeia, talvez sejamos tudo isso, mas será que agora importa? Talvez sejamos barões e burros de carga; tudo daí para cima e para baixo, mas será que ainda nos servem de alimento real e concreto as epopeias e as anti-epopeias? Será que vamos continuar a deixar que nos definam, do alto, enquanto povo, a deixar que a literatura dos outros diga ao mundo e à história dos vencedores o que fizemos e não fizemos, se vamos além da Taprobana ou que não vamos a lado nenhum? Afinal o que importa? Será a literatura que vemos ao longe e nos dá força ou nos deita abaixo; que ora nos cega com glórias do passado, ora nos agarra pelo colarinho e nos acusa de catalepsia ambulante? Não é a literatura, senhores. Nem a crítica de arte nem a câmara escura. Não é, pelo menos, a literatura lá de longe.